O cego que vê TV




O cego que vê TV

Rogel Samuel

Pois um dos inúmeros méritos do livro de Leila Míccolis, Passagem de Calabar, é o de revelar, salientar, enfatizar, chamar à cena o leitor para a importância e beleza desse belo poema dramático, talvez o melhor da literatura brasileira, que se equipara ao “Marinheiro” de Fernando Pessoa.


Calabar foi escrito para ser representado. Traz para nós os conceitos de pátria, cidadania, memória. E também de alienação, da alienação da classe média brasileira. Ou seja: “Calabar está onde não está”, o que quer dizer que ele está em toda parte. Quem o diz é “Uma voz”, um personagem fantasma, que deve ser tudo, talvez seja mesmo a Voz da História, a voz das esquerdas, a voz política, a voz crítica.
Como “A viúva de Calabar” é a voz da revolução, da luta armada, a voz que chama para as ruas, para o grito dos excluídos, que diz “que meu ódio esteja em toda a parte”, o ódio revolta, o ódio nordestino.


O poema dramático de Ledo Ivo estampou um país fracionado, dividido, entre Norte/Nordeste e Sul/Sudeste, entre o Brasil que recebe Bolsa Família e o Brasil que não precisa receber, entre o político nordestino analfabeto de esquerda sem um dedo e o político empresário paulista intelectual doutor cosmopolita. O poema mostra a divisão ideológica do Brasil, ainda que a Leila tentou passar por cima disso para não ferir a mesma ferida. Neste poema, extremamente dramático, Ledo Ivo deu voz a quem não a tem, fez falar e mesmo gritar a grande massa da população pobre, pois “quem te fez em pedaços” que lamba as pedras, que beba a água salgada e morra na sua sede.


Para Ledo Ivo, “a História é uma ficção”, ou seja, uma narrativa, um personagem, uma Voz. “Para mim, não há verdade histórica. Há a versão do vencedor, do vencido, do observador, do pesquisador, etc. Como poeta, não estou interessado na verdade, e sim na mentira, no mito, na mitografia, na mitologia. Calabar é uma figura mítica.”
A história é sua versão, a história é uma versão da verdade.
Ledo Ivo criou também a versão dos vencidos, criou a versão dos personagens do poema. Algumas versões são dos vencidos, como do “Alagoano”, que diz:


Assim eu sou coisa grátis,
já que não tenho valor.


E criou a versão da classe média brasileira, enriquecida, alienada, que não vê nada, que não sabe de nada, que nada pensa, que não é capaz de ver o que não está na TV:


Quem vê nem sempre vê.
O melhor cego é aquele
que vê na TV.


Que esses versos valem por um poema inteiro e são da maior atualidade!