O caburé de asa partida
Em: 24/07/2022, às 12H00
Reginaldo Miranda[1]
Eu poderia ter uns seis anos de idade, pouco mais ou menos. Acordara cedo para acompanhar meu pai ao curral. Na pequena cidade, era comum ter-se uma quinta com curral na periferia do centro urbano. Ali se colocavam vacas paridas, trazidas das fazendas mais distantes para a colheita matutina do leite. A nossa, ficava nos fundos de casa. Toda manhã, eram ordenhadas algumas vacas e o leite consumido pela família.
Meu pai acordava por volta de seis horas da manhã, pegava os arreios e a leiteira, dirigia-se ao curral. Quase sempre, quando eu ouvia o barulho na casa, levantava para acompanhá-lo. Para mim, aquela atividade era prazerosa; ver a lida com os bezerros e as vacas.
Naquela madrugada, como quase sempre, ele caminhava à frente, com os arreios e a leiteira, e eu o seguia. Ouço o barulho em uma planta, ainda há poucos metros de casa. A planta se estendia sobre o muro da vizinhança. Muro baixo. E baixa também, a planta. Chamo a atenção do meu pai. Olhamos. Logo eu enxerguei um pássaro saltitando entre os galhos e folhas. Um caburé. Mas ele não conseguia voar. Apenas saltava pelos galhos. Alcancei-o com as mãos. Segurei-o. Estava de asa partida. Certamente, algum acidente na noite ou dia anterior.
Nesse dia, meu pai seguiu sozinho para o curral. Voltei para casa. A alegria, enorme. O coração, saltitante. Eu tinha um pássaro! E não havia quem me fizesse dele desistir. Acho que ninguém tentou.
Passada a emoção inicial, ocorreu-me um problema: onde colocá-lo? Não tinha gaiola que o comportasse. Alguém me sugeriu que o prendesse num ninho de galinha que existia no quintal, ao lado de minha casa. Não sei se a sugestão foi de meu pai ou de minha mãe. O ninho era feito de varas encostadas em uma parede. Eu ali o coloquei. Desde então, passou a ser a sua morada. Constantemente eu levava-lhe água e comida. Ele bebia e comia com prazer.
O tempo foi passando e sua asa curando. Certo dia, quando eu abria o chiqueiro para servi-lo ele bateu asas e voou, pousando no galho de um umbuzeiro que ficava ao lado. Tomei um susto. Fiquei decepcionado. Perdera a minha ave. Minha mãe me consolou, dizendo que eu praticara uma boa ação: salvara a vida de um bichinho. Fui me acostumando com a ideia. Cheguei a me sentir útil, importante, passando a andar de ego inflado.
Para completar meu orgulho, durante mais de um mês, aquele caburé voltava da mata, sobrevoando o nosso quintal e pousando nos galhos do umbuzeiro. Nunca esqueci aquela cena. Até hoje penso que ele voltava para me agradecer pelo favor recebido. Esse gesto, que eu atribuía a uma gentileza, perdura na minha lembrança dos tempos de infância.
[1] REGINALDO MIRANDA, advogado com mais de 30 anos de efetiva atividade profissional, cofundador e ex-presidente da Associação de Advogados Previdenciaristas do Piauí (AAPP), foi membro do Tribunal de Ética e Disciplina da OAB-PI, em dois biênios e presidente da Academia Piauiense de Letras, também em dois biênios. É vice-presidente do Instituto Histórico e Geográfico do Piauí. Autor de diversos livros e artigos. Possui curso de Preparação à Magistratura (ESMEPI) e de especialização em Direito Constitucional e em Direito Processual (UFPI-ESAPI). Contato: [email protected]
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