O bilaqueano Augusto dos Anjos
Em: 24/05/2020, às 15H23
[Bráulio Tavares]
O aniversário de Augusto dos Anjos aconteceu algumas semanas atrás, e voltou à discussão o episódio, talvez verdadeiro, ocorrido com Olavo Bilac. Quando se noticiou a morte do poeta paraibano, em Leopoldina, a notícia repercutiu no Rio de Janeiro, onde Augusto tinha morado até pouco tempo atrás. No Rio ele lançara seu livro Eu, e tinha vários amigos e admiradores.
“Morreu o poeta Augusto dos Anjos”, disse alguém, talvez na porta de uma livraria na Rua do Ouvidor, ou na calçada da Confeitaria Colombo. “Quem é?”, perguntou Bilac. O interlocutor explicou e recitou um soneto de Augusto. Bilac, desdenhosamente, atirou longe a ponta do cigarro e comentou: “Não se perdeu grande coisa”.
A ponta de cigarro é por conta do meu cacoete ficcional, mas há vários relatos dessa atitude dismissiva do “Príncipe dos Poetas Brasileiros” em relação a um anônimo, cujos versos arrevesados Bilac certamente consideraria de mau-gosto. Os relatos divergem sobre o soneto que serviu de amostra. Uns falam no clássico “Versos Íntimos” (“Vês? Ninguém assistiu ao formidável enterro...”), outros falam de “Versos a um Coveiro” (“Numerar sepulturas e carneiros, reduzir carnes podres a algarismos...”)...
Não importa; seria mesmo difícil que Bilac, poeta de imenso talento mas cheio de arrebiques, “entendesse a proposta” de Augusto, que aliás, pouca gente da época entendeu.
A diferença entre os dois é principalmente que Bilac nunca leu Augusto, mas Augusto denota ter lido Bilac. E não havia como fugir a uma influência de um poeta que, nas suas décadas de maior brilho, tinha uma presença comparável à que Carlos Drummond veio a ter meio século depois.
Um dos repertórios poéticos de Bilac era a Fantasia Heróica, inspirada na Antiguidade Greco-Romana e na Idade Média. Castelos, imperadores, príncipes, espadas, estandartes, exércitos, elmos, escudos... tudo isso fazia parte do repertório de imagens do poeta de pince-nez e bigodes bem cultivados.
Muito bilaqueano este soneto “Vandalismo”, onde Augusto dá vazão a leituras que não diferiam muito das do príncipe:
Meu coração tem catedrais imensas,
templos de priscas e longínquas datas,
onde um nume de amor, em serenatas,
canta a aleluia virginal das crenças.
Na ogiva fúlgida e nas colunatas
vertem lustrais irradiações intensas
cintilações de lâmpadas suspensas
e as ametistas e os florões e as pratas.
Como os velhos Templários medievais
entrei um dia nessas catedrais
e nesses templos claros e risonhos…
E erguendo os gládios e brandindo as hastas,
no desespero dos iconoclastas
quebrei a imagem dos meus próprios sonhos!
É um dos sonetos do Engenho Pau d’Arco, de 1904, e Bilac está todo aí, não somente na imageria medieval e templária, mas no tema tipicamente bilaqueano (e ainda tipicamente Romântico) do guerreiro derrotado no limiar das grandes conquistas, como o Fernão Dias de “O Caçador de Esmeraldas” (“Na terra que venceu há de cair vencido”). Sem falar no ritmo enumerativo (“e as ametistas e os florões e as pratas”), presentes o tempo todo em Bilac:
E a água verde do mar, e a água fresca dos rios,
e as ilhas de esmeralda, e o céu resplandecente,
e a cordilheira, e o vale, e os matagais sombrios...
(“A um violinista”, em Alma Inquieta)
É bem de Bilac essa listagem de elementos que contempla a um só tempo o olho e o ouvido; e qualquer poeta brasileiro da época seguia na mesma pisada.
Bilaqueano, também, este soneto que talvez não seja tipicamente Augusto na temática, “Vencedor”, mas o é na história afetiva de quem sempre o leu e o decorou:
Toma as espadas rútilas, guerreiro,
e à rutilância das espadas, toma
a adaga de aço, o gládio de aço, e doma
meu coração – estranho carniceiro!
Não podes?! Chama então presto o primeiro
e o mais possante gladiador de Roma.
E qual mais pronto, e qual mais presto assoma,
nenhum pôde domar o prisioneiro.
Meu coração triunfava nas arenas.
Veio depois um domador de hienas
e outro mais, e, por fim, veio um atleta,
vieram todos, por fim; ao todo, uns cem…
E não pôde domá-lo, enfim, ninguém,
que ninguém doma um coração de poeta!
A ambientação de Fantasia Heróica é toda de Bilac, que gostava de passear por Roma, Cartago, Alexandria, Atenas; não o são alguns pequenos tropeços que um parnasiano dificilmente deixaria passar, como a repetição do “por fim” nos tercetos – e tem esse “que” do verso final, que não sei por que me soa tão paraibano substituindo o “porque”, e que um parnasiano trocaria sem perda alguma por um simples “Pois ninguém doma...”.
Num outro artigo, de tempos atrás, comentei como os dois poetas, cada qual ao seu modo, glosava o tema da palavra que não consegue corresponder à grandeza da idéia, ou das emoções tão intensas que se quedam sem expressão:
https://mundofantasmo.blogspot.com/2009/03/0936-impotencia-da-fala-1732006.html
Mas Bilac era capaz também (porque num certo ponto de vista o Parnasiano é um Romântico domesticado) de certas visões que não deixam de lembrar o romantismo “negro” ou “fúnebre” que também influenciou Augusto:
(...)
Uivam os ventos funerais medonhos...
Brilha o luar... As lápides se agitam...
E, sob a rama dos chorões tristonhos,
sonhos mortos de amor despertam e palpitam,
cadáveres de sonhos...
(“Campo Santo”, em Alma Inquieta, 1902)
Ou em “Pomba e chacal” (Sarças de Fogo, 1888):
Ó Natureza! Ó mãe piedosa e pura!
Ó cruel, implacável assassina!
Mão, que o veneno e o bálsamo propina
e aos sorrisos as lágrimas mistura!
Pois o berço, onde a boca pequenina
abre o infante a sorrir, é a miniatura
a vaga imagem de uma sepultura,
o gérmen vivo de uma atroz ruína? (...)
Não é somente o tema da morte a brotar de dentro da vida, que é augustiano; é até mesmo um detalhe de dicção, como esse “pois” que inicia o segundo quarteto, e que tanto lembra Augusto e seu estilo comparativo, demonstrativo de teses, espalhado por toda sua obra: “Pois é mister que para o amor sagrado...”.
Eram reinos poéticos cujas capitais ficavam distantes mas cujas fronteiras se interpenetravam.