O amante das amazonas

O amante das amazonas: o ciclo sob o olhar de um analista-autor

 

LUCILENE DIAS GOMES

 

            Rogel Samuel, autor de O amante das amazonas, agrega duas características relevantes para nosso estudo sobre as obras literárias do “ciclo da borracha”. A primeira delas é a experiência que, em seu caso, não é direta, vem de reminiscências legadas pela memória de antepassados, como o avô, um alsaciano enriquecido pelos lucros da borracha amazônica, no início do século XX. A segunda característica motivadora do estudo desse romance surge do fato de o autor ser analista literário, atividade resultante de sua carreira no magistério.[1]

            Entendemos ser a atividade de analista empreendida por Rogel Samuel a promotora da diversificação de abordagem do romance O amante das amazonas. Não o nomeamos, contudo, um escritor-crítico, conforme concebe Leyla Perrone-Moisés[2] por entendermos que o autor exerce a atividade de analista paralelamente a de escritor e por considerarmos que tanto a sua produção teórica quanto a sua produção ficcional não alcançaram a extensão e o nível de sistematização necessários à qualificação de escritor-crítico, como o estabelece o estudo de Perrone-Moisés. Uma vez que Samuel não pratica a análise do texto ficcional como corolário de sua atividade de escritor, podemos considerar o oposto: que sua atividade de professor e analista possibilitou a expressão de ficcionista, expressão essa que marcará a renovação da terceira fase ficcional do ciclo.

            O amante das Amazonas realiza a brevidade que, segundo lembra o narrador de um romance de Ítalo Calvino, é necessária aos romances modernos: “[...] Hoje em dia, escrever romances longos é um contra-senso: a dimensão do tempo foi estilhaçada, não conseguimos viver nem pensar senão em fragmentos de tempo que se afastam, seguindo cada qual sua própria trajetória e logo desaparecem [...].”[3] Dessa forma, o romance se divide em 23 capítulos curtos: Viagem, Palácio, Numas, Paxiúba, Ferreira, Júlia, Desaparece, Ratos, Frei Lothar, Perdida, Ribamar, Manaus, Conversas, O leque, A livraria, Benito, Rua das Flores, Encontro, Mistério, Noite, O pórtico, Jornal, Fim. São capítulos que, por sua vez, não estabelecem uma continuidade linear do enredo, alguns deles basicamente introduzem personagens, o que reforça a característica fragmentária da narrativa.

            Fragmentado é ainda o narrador do romance. Divide-se entre primeira e terceira pessoas. Em primeira pessoa, narra Ribamar, retirante do povoado de Patos, em Pernambuco, vindo para a Amazônia em 1897. Já a voz que narra alternando a primeira e terceira pessoas tece comentários, dialoga com o leitor, insere digressões e se assume como ser ficcional: “[...]sei, e de antemão o digo, que esta é apenas uma obra de ficção, e portanto mentirosa, dentre as várias que há na literatura amazonense, e espere o leitor e a leitora o surpreender-se como, apesar disso, o fio do destino do que vai descobrir é correto. Todos os fatos, aqui expostos, foram realidades notáveis e aconteceram realmente para a minha imaginação [...].”[4]

            As narrações em primeira e terceira pessoas, portanto, não se apresentam como instâncias independentes. Por vezes, a forma indireta da terceira pessoa se personaliza. Expressa-o o fato de que o romance se inicia com a narração em primeira pessoa da personagem Ribamar para, posteriormente, no capítulo dez, ser atribuída ao narrador em terceira pessoa, que destaca: “O Manixi naquela época agonizava, improdutivo. Fazia dois anos que o próprio Ferreira não aparecia, e a sede, depois da morte do Capitão João Beleza, ficara sob as ordens de um Ribamar (d’Aguirre) de Souza, oriundo de Patos, Pernambuco, conforme o primeiro capítulo desta minha narrativa.”[5]



[1] Graduado em Ciência da literatura pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rogel Samuel exerce nessa universidade a função de professor doutor adjunto à época da publicação de O amante das amazonas (1992). Como analista literário, publicou Crítica da escrita (1979), organizou e colaborou na publicação de Literatura básica (1985) e Como curtir o livro: o que é teolit? (1986). No campo ficcional, o autor produziu prosa e poesia. Publicou, em 1991, 120 poemas.

[2] De acordo com a autora, os escritores-críticos caracterizam-se essencialmente como escritores (ficcionistas) que tomaram a si o papel de escrever crítica em razão de um descontentamento com a atuação da crítica profissional: “[...] Os ataques e as chacotas dos escritores contra os críticos literários constituem um vasto repertório, capaz de preencher vários volumes. Na ausência de uma instância superior que regulasse o dissenso, e no descontentamento com as instâncias ‘inferiores’ que se arrogavam o direito de os julgar, os criadores puseram-se a praticar uma espécie de contra-crítica, estimada por eles como mais competente, ou pelo menos mais eficiente, por estar ligada à própria experiência criadora.”(Leyla PERRONE-MOISÉS. Altas literaturas: escolha e valor na obra crítica de escritores modernos, p. 143).

[3] Ítalo CALVINO, Se um viajante numa noite de inverno,  p. 16.

[4] Rogel SAMUEL, O amante das amazonas, p. 51.

[5] Ibid., p. 59.