Rogel Samuel: O amante das amazonas, 26

 

 

TREZE: CONVERSAS.

 

 

- Boa noite - foi o que disse o Padre Pereira ao dar o primeiro passo dentro da sala onde o aguardava o Comendador Gabriel Gonçalves da Cunha, que jogava xadrez.

O Comendador levantou os olhos do tabuleiro e fixou o padre.

Gabriel ainda era um homem rijo, magro e elegante. Usava sempre uns temos de linho branco que combinavam com seus cabelos de prata. Indicou a cadeira, em frente, onde o padre se sentou.

Gabriel jogava xadrez sozinho. Ficaram os dois por um momento em silêncio, como se pensassem no que dizer. Ouviam-se os sons da cozinha, ouviam-se os passos de alguém num cômodo próximo, ouviam-se sons da rua.

Apareceu uma criada e o Comendador lhe deu o tabuleiro, que ela tomou com cuidado para que o jogo não se desfizesse.

O calor daquela sala era brando, as carapanãs zumbiam. A mobília era discreta. Rara. Moderna.

-   E o nosso homem? perguntou o Comendador. Via-se logo o tema da visita. Padre Pereira, muito a contragosto, tinha pedido um encontro com o Comendador para tratar do delicado assunto. Gabriel aceitou. Convidou-o para jantar. Teriam oportunidade de conversar.

-   Menos mal, respondeu o padre. Parece que lhes chegaram uns pedidos do interior. E ele conseguiu vender alguma coisa

-   Está enganado! - gritou-lhe o Comendador, ríspido. O senhor não sabe de nada!

O Comendador nunca perdera o sotaque português, apesar de estar no Amazonas há décadas.

-   As dívidas de Juca das Neves somam muito mais do que vale o seu patrimônio!

Há poucos dias Padre Pereira tinha ouvido de Juca das Neves aquela frase: “Só o senhor pode-me salvar”.

-   Como? perguntou o padre.

-   Fale com o Comendador

Juca das Neves tinha sido o grande amigo de Pierre Bataillon.

Quando Zequinha desapareceu, Juca das Neves mandou procurá-lo dentro da mata. Seu enviado, Raimundo Bezerra, organizou uma expedição. Partiu da Praia do Cuco, com dois mateiros, procurando o lugar para onde os Numas tinham levado o poderoso e rico jovem.

Corria que Zequinha tinha chegado na Praia do Cuco numa canoa, encontrando-se com uma menina Numa, que era sua amante, e que, na companhia de toda a nação dos Numas,  partira dali com a índia em direção ao indeterminado, sumindo-se dentro do mato com toda a corte para se casar na aldeia. Todos diziam que ele foi por sua própria vontade, e que por isso era de todo impossível procurá-lo, como estavam fazendo.

Porém, e apesar disso, durante quase dez anos o procuraram em vão - para depois o darem por morto. E seu caso foi arrolado junto a outros desaparecimentos de pessoas e até de navios inteiros, como o Presidente do Pará, em 1896, o Jonas, no lago Uerê, o Japurá, a 517 milhas no Juruá, o Tocantins, na boca do Igarapé do Cobio, em 1900, ou o Ituxi, no sacado Mixirire, em 1897, ou o Douro, em algum lugar, em 1900, o Leopoldo de Bulhões, na volta do Encarnado, em 1897, ou mesmo o Herman, o São Martinho, o Alagoas - e muitos outros navios que desapareciam na Amazônia, como se não tivessem naufragado e simplesmente sumissem, encantados, nunca ninguém tendo nenhuma notícia deles nem de ninguém de sua tripulação.

 

A sala se impregnava da fumaça dos candeeiros que mantinham a luz amarela. O exótico ambiente combinava duas fases culturais, a do art-nouveau com o modern style que começava a despontar na produção industrial norte-americana da modernidade. Era uma sala de paredes muito altas, tinha um jogo de poltronas de riscado, uma cômoda antiga. E uma vitrola R.C.A.

- Juca das Neves dessa não sai - dizia cruelmente o Comendador para o padre, sentado em sua frente. Vai quebrar, é um homem liquidado... morto.

- Acontece que está doente... - começou tristemente a dizer o Padre Pereira.

Padre Pereira estava ali com a missão de comover o Comendador. Sabia o padre que era uma missão quase impossível, o Comendador era frio, lógico. Durante todos aqueles anos o padre recebera muito dinheiro de Juca das Neves para o Orfanato. Competia agora pelo menos tentar fazer alguma coisa a seu favor.

- Doente? - perguntou o Comendador, que era o maior credor de Juca das Neves. Apesar de considerar aquele dinheiro perdido, era sempre desagradável saber que alguém ia morrer sem pagar, uma suprema, uma descortesia. O Comendador ficou ainda mais irritado. “Que tem ele?” perguntou.

- Não sei bem, disse o padre, evasivo. Parece que a situação da firma está acabando com ele...

- E a filha? - rebateu o Comendador.

Aquela era a pergunta que Padre Pereira não esperava ouvir. O olhar do religioso tomou-se severo, olhou o velho como se o repreendesse de ter-lhe feito tal pergunta, e foi com a mais sombria das faces que respondeu:

- Como sempre! O Juca ... - iniciou o padre, tentando mudar de assunto. Gabriel cortou-lhe a palavra:

- Uma cadela no cio - os olhos do Comendador brilhavam no escuro.

- Sim, respondeu o padre, com a voz embargada. Foi com descontrole de si que ele acrescentou, como se recriminasse alto, clamando aos céus:

- O pior é que o pai não tem autoridade sobre ela, o pai é dominado por ela!

Naquele exato momento a causa de Juca das Neves estava irremediavelmente perdida.

- E a mãe, como o Senhor sabe, nervosa, nada faz, nada sabe.

A mãe era D. Constança.

- A menina está perdida ... - dizia o padre, lastimavelmente.

- E o pai quebrou! acrescentou, vitorioso, o velho Gabriel. Rameira fogosa! Mas bonita é, sim senhor

O padre virou o rosto, como se evitasse a bofetada.

- Para complicar, acrescentou Padre Pereira, Juca das Neves colocou um homem dentro de casa...

- Um homem?

- Sim. Um rapaz, vindo do interior. Um finório educado. Está morando lá, e trabalha agora no Armazém. Chama-se Ribamar.