Naquela tarde Antônio Ferreira ressonava na rede, sonhava com grandes extensões da terra devoluta, florestas, lugares secretos aonde nenhum civilizado chegara - rios, cachoeiras, pedras, montanhas, além, além daquele horizonte, indefiníveis, lá, depois do cortinado de esmeraldas e de nuvens da margem esquerda do Igarapé do Inferno - Aurora, Itamaracá, meandros do rio Jordão, em prata e ouro escorridos, cabeceiras do Igarapé Bom Jardim, à Sudoeste, já em terras peruanas na direção do Rio Pique Yaco, e fantásticos, deslumbrantes, os eldorados ...
Acordou com leve pressão sobre a perna esquerda, alguma coisa batia ali, como pluma, no meio do esplendor da riqueza do seu sonho e tocava seu corpo com veludo. E ele acordou e viu: peluda e vermelha, cerca de 15 cm de diâmetro, mortal, subindo por sua coxa, mas quando a maacu Ivete a afastou com um pedaço de pano, a aranha - rara e feroz - a acanthoscurria atrox! - pulou para o parapeito, rodou sobre si mesma, levantou as patas dianteiras em atitude agressiva, defesa, arrepiou-se, e desapareceu. Para acalmá-lo, a índia se sentou na beira da rede. Olhou para ele e riu-se, debruçando-se sobre seu tórax. Ferreira segurou fortemente a cabeça da índia e puxou-a para si. Ela avançou num surdo gemido selvagem. Do beiral do telhado uma águia alçou vôo, ganhando os espaços azuis. Era um gavião-de-penacho uiraçu.
- EM 94 meu filho ganhou a ama Maria Caxinauá, uma índia um pouco mais velha do que ele, que na época tinha quatro anos. Cresceram juntos. Quando o menino fazia alguma travessura, a ama era castigada em seu lugar. Ifigênia batia duro, mas a índia não gemia, não chorava. Parecia não sentir dor. Não confio em índio. São traiçoeiros, cruéis, vingativos, capazes de vingança, mesmo depois de anos. Mas Ifigênia não me ouvia, não acreditava.
Pierre soltou a fumaça, antes de continuar: “De três em três anos os pais da índia vinham buscá-la, a pretexto de que ela não se esquecesse da tribo. A índia ficava um mês no acampamento e voltava, magra e doente - não gostava, diziam os pais, de ficar longe do Zequinha...”.
Por muito tempo ficaram silenciosos enquanto se ouviam os quatro acordes da mãe-da-lua, saídos da escuridão e do silêncio da noite. Antônio Ferreira aspirava rapé. Tinha o cabelo penteado, liso, partido ao meio, ao qual se juntava suíças longas, que ele acariciava.
A sala de música estava vazia. Eram poucos os móveis ali, o pequeno Pleyel, de cauda, a mesa, quatro cadeiras e o armário dos violinos, fechado. Pierre ofereceu um charuto e disse: “Até que, naquele ano, apareceram os Numas ...“. Aquele aposento ocupava uma posição separada do Palácio. Ninguém podia entrar, sobretudo quando Pierre tocava. Os dois homens fitavam a mesa que os separava. Havia uma garrafa em cima da mesa, dois copos. Pierre suspirou. Os seus olhos idosos estavam perturbados com a reflexão a respeito do passado remoto. Sua face alongava-se. Levantou os braços para o alto, permaneceu em silêncio e olhou o outro de maneira ausente:
- As histórias que lhe vou contar são absurdas, não lidam com problemas humanos, mas com um reino diferente do nosso.
Ferreira esforçou-se para pegar o copo e beber. Foi sentindo o luxo do bacará daquela taça que ouviu o que se segue:
- Em novembro de 1905 os Numas apareceram e começaram a caçar os Caxinauás. Apareciam todos os dias. Nunca houvera aquilo, nunca os Numas, tão próximos, e ferozes. Era a seca, a vazante. Tive de tomar providências enérgicas. Agrupei os Caxinauás no Quati, desloquei homens armados. Depois de mansos, os Caxinauás ficaram indefesos. Eles vieram logo, esconderam seus pertences. São mestres nisto, na arte de guardar, de esconder, de camuflar. Podem fazer desaparecer canoas inteiras, enterrando-as debaixo d’água, que mesmo depois de anos desenterram. Todo Caxinauá tem sempre um tesouro escondido.
Pierre mordiscou a ponta do charuto. Encostou-se nas almofadas da cadeira Voltaire. Os painéis das paredes, iluminados por dois castiçais de cinco velas de bobeche móvel, tinham amaciado o brilho da seda marfim em que os painéis eram pintados. Numa cena do Século XVIII um personagem mitológico se preparava para atirar uma flecha. Pierre mergulhou em cogitações.
- Sabe o que aconteceu então? - perguntou o velho.
E ficou em silêncio.
- Um furto, respondeu o velho. Fui furtado de um pequeno cofre.
E ergueu-se, levantou-se, pôs-se de pé e andou, solene, até um chiffonier encostado nas cortinas. De lá mostrou um cofre de metal. “Igual a este”, disse. Era um cofre de viagem médio. Media cerca de 30 centímetros cúbicos e se formava por revestimentos de ferro certamente separados por substâncias ignífugas. Abria-se por uma chave brocada artisticamente trabalhada.
- Eram jóias?
- Não - cortou o velho. Ali Ifigênia guardava ouro. Eram libras esterlinas, de ouro, do toque de 0,900. Foi o único furto que não consegui descobrir. Depois disto os valores todos eu os guardava no cofre grande. Nunca consegui saber, Ifigênia sempre disse que Maria Caxinauá era a culpada. Na época, ela foi amarrada a um formigueiro e quase morreu. Mas nada confessou. Meu filho, quando soube, foi em sua defesa. Mesmo que eu tivesse continuado as investigações e a mandasse supliciar até a morte, ela morreria sem nada confessar. O quê?
Tossiu. Pegou a taça, encostou as costas retas no espaldar e reinou o pescoço com um puxão. Ferreira incomodado, mexeu-se e perguntou:
- Algum empregado? Alguém pode ter ficado rico, gastando, dando sinais de riqueza...
Era como se o velho estivesse a um megaparsec:
- Ninguém. Nem pode ter sido um empregado qualquer ... dificilmente foi um Caxinauá ... O cofre está aqui, continua aqui, tenho certeza.
- Como sabe? perguntou Ferreira, apertando o laço da gravata.
- Por isso mesmo. Ninguém apareceu rico, e os Caxinauás não conhecem o valor do dinheiro. Além disso, é impossível para um Caxinauá viver fora da tribo. Eles constituem um povo simbiótico, um organismo só, vivo, único. Não são seres individuais. O indivíduo é o povo, a raça. Por isso foi tão fácil amansá-los. Um índio sozinho não poderia ter roubado o cofre e fugir para Manaus ou Belém. Não os Caxinauás.