Notas de um romancista burguês
Por Bráulio Tavares Em: 11/06/2010, às 06H34
Bráulio Tavares
(The Librarian, por Arcimboldo)
“Não queremos uma literatura que inclua galáxias, planetas, raças alienígenas e outros elementos fora de nossa jurisdição. Nosso mundo é centrípeto, uma espiral que converge para seu centro. Passamos três séculos erigindo um sistema que tem na sua periferia atarefada a Ciência, a Tecnologia, a Economia, a Política, ou seja, as atividades transformadoras da matéria e das relações humanas. O centro desse sistema é o objetivo final de sua criação: nossa vida cotidiana, nossa existência como pessoas, nossas casas, posses, famílias, relações interpessoais, triunfos e tragédias no âmbito doméstico e nos círculos de amizade e parentesco. É esta a matéria da nossa literatura.
“Queremos uma vida compreendida, codificada, na qual as únicas variáveis sejam os sentimentos humanos, esses deuses caprichosos que nos deleitam e governam. Queremos uma literatura de arcabouço social fixo, com regras de mecânica newtoniana, para que em sua medula brotem o elemento lírico, as flutuações sentimentais, tudo que nos convence de que somos únicos, preciosos e insubstituíveis. O Universo como moldura para a História dos Nossos Sentimentos, a Saga das Nossas Famílias, a Crônica de Nossas Ascensões Sociais.
“Precisamos de um Universo meramente passivo, receptivo, que se mova e nos encante, pois que é espetáculo, mas com a previsibilidade de um protetor-de-tela. Não queremos um Universo que venha a nos invadir e nos incomodar; nem um Universo que solicite nossa intervenção, incite a nossa cupidez ou nos acene com a possibilidade de aventuras. Domar a terra já nos deu aventuras de sobra durante três séculos, e nada nos impede de passar mais três a recontá-las.
“Livros existem para dar perpetuidade aos anos que passamos sobre a Terra; existem para preservar em belas frases o mesmo que os gregos preservaram no mármore e os florentinos na pintura a óleo. A literatura deve ser a eternização do indivíduo, num mundo com três círculos concêntricos: por fora de tudo, um Universo num balé pré-coreografado pela Ciência; dentro dele, um entrechoque de forças históricas e sociais igualmente dinâmicas e mensuráveis; e no centro de tudo o Olimpo do Indivíduo, dos seus sentimentos e emoções, objetivo final de toda literatura que se preza.
“Chamamos a isto de Realismo porque este é o objetivo final de nossa luta pelo domínio da realidade: a fruição de nossas vidas individuais, de nossas relações domésticas, de nosso trabalho e nosso lazer. Recusamos o heliocentrismo literário, a tese herética de que o Universo está no centro e o Homem na periferia. Recusamos literaturas onde apareçam elementos que não façam parte do nosso mundo reconhecível. Como leitores, queremos espelhos onde nos possamos admirar e corrigir. Não queremos um espelho onde apareçam do lado de lá coisas que não estamos a ver do lado que nos pertence. Não foi para isto que passamos três séculos construindo um mundo à imagem e semelhança do nosso Umbigo.”