Na solidão da terra
Por Cunha e Silva Filho Em: 14/02/2009, às 18H58
Faz dezenove anos que ali, junto de outros restos mortais, se encontra a memória dos teus ossos, afundados estes no chão de areia da terra, no chão úmido ou seco, dependendo das variações do tempo, que te viu nascer e crescer até à meninice. Ali estão tuas memórias na matéria que ainda resta sabe Deus até quando. Ali estás no sossego da paz do silêncio da solidão absoluta e irremovível. Estás em Amarante.
As estações passam, mas ali ficas, imóvel, não mais como os “esqueletos andantes” de Borges, porém como remanescentes do que foras, do que fizeste ou deixaste de fazer. A vida é um ciclo incompleto. Estão ali ao lado dos teus e de outros cujo destino final é o destino da carne, contudo da carne descarnada pelas mutações biológicas a que todo ser vivente está irremediavelmente sujeito.
Chove, faz frio, faz calor. O vento sibila nas noites sempre solitárias e ali, extremamente sozinho te encontras.
Do vagido às brincadeiras infantis, das muito precoces discussões políticas locais, por vezes exaltadas, por vezes chegando quase às vias de fato, naquela terra ainda rica e esperançosa de progresso continuado até à transformação – que não se cumpriu ainda -, para uma desenvolvida e moderna cidade do interior ( no passado cheia de tantas tradições e de tanto desenvolvimento), a tua presença ágil , buliçosa, com os olhinhos infantis perscrutadores, vivos e brilhantes, parecendo olhos de adulto, tão próorios das crianças inteligentes, fazia-se notar, sobretudo pelo teu pai, comerciante próspero e pessoa calma que logo viu na criança irrequieta laivos de grande inteligência.
A escola, os primeiros professores, os coleguinhas de classe agora sumidos no tempo, as primeiras letras, a dificuldade para andar na fase normal, o espanto pela vida e suas mil descobertas, o encantamento que se fez eterno com a alegria do viver jamais arrefecida até seus últimos dias, o pressentir dos grandes embates de uma vida que não seria transcorrida com facilidades apenas, mas, em grande parte, com lances dramáticos e lancinantes, deixava aquele menino esperto e impulsivo mergulhado na sondagem do futuro, desde a infância, adolescência, mocidade, maturidade até à velhice.
Por todas essas fases passara, como todo o mundo. Fases que lhe deixaram fundas cicatrizes de natureza vária, amorosa, social, profissional, familiar e intelectual.
Os estudos foram prosseguidos na capital, Teresina, depois, em Niterói como interno de padres salesianos; em seguida, em Lavrinhas, São Paulo, como seminarista faria o curso de filosofia, também da ordem salesiana, cuja conclusão para a vida sacerdotal seria feita em Turim, Itália. Para trás, deixara o pai, a mãe, a terra natal. A vida sacerdotal não vingara. Casara-se muito jovem no Rio de Janeiro, em 1927.. Dessa união nascera-lhe uma filha. Voltara com a família para Amarante por volta de 1927. Casamento desastrado, pouco durou. A esposa e a filha voltaram para o Rio de Janeiro É claro que a ausência da filhinha o deixou desolado. Meu pai ficara em Amarante, onde permaneceria até 1947, quando saíra definitivamente de Amarante para fixar residência em Teresina.
A sua volta a Amarante foi decisiva para a escolha de sua vocação. Embora muito jovem, já estava intelectualmente preparado para a carreira que escolhera: o magistério. Definia-se uma vez como um professor nato. E, na verdade, o foi, fato que se confirmou pela brilhante trajetória que conquistou no ensino piauiense durante décadas. Em Amarante, o melhor estabelecimento de ensino era o Ginásio Amarantino, dirigido pelo futuro e principal historiador piauiense, Odilon Nunes. Papai logo foi nele lecionar. O Ginásio Amarantino deixou de funcionar depois de três anos de fundação.Meu pai conseguiu adquiri-lo e, aproveitando-lhe as instalações, fundou, em 1931, o Ateneu Rui Barbosa. Aí iniciou uma profícua e brilhante carreira docente em Amarante.A escola logo ganhou fama pela alta qualidade de seu ensino e pela rigidez com que meu pai a dirigiu. Na verdade, o Ateneu, oferecia o curso primário completo, o curso de admissão e o curso complementar, ou seja, o último servia a alunos que não pretendiam continuar estudos mais adiantados. Naquela mesma época, papai começara a escrever para jornais de Floriano (Jornal de Floriano) e Teresina, angariando fama de jornalista talentoso e independente. Seu Ateneu Rui Barbosa, por sua vez, continuava preparando inúmeros alunos, muitos dos quais se tornariam nomes destacadas da vida pública tanto no Piauí quanto nacionalmente. Certa vez, com justa vaidade, me dissera: “Meus alunos tiveram sorte, grande parte deles fez figura no Piauí e no país”. Talvez, esse fosse o seu maior orgulho como educador.
Nos idos de 1935, quando ainda residia em Amarante exercendo com brilho a docência no Ateneu Rui Barbosa, sofrera a injusta sentença de prisão por motivos ideológicos. Era o período sombrio do Estado Novo. Sua prisão fundamentava-se em arbitrária alegação de que meu pai fosse comunista. Ora, nunca ele se declarara com tal. Apenas, como é natural, tinha feito leituras marxista-leninistas em livros que lhe chegaram não às mãos, mas indiretamente, quer dizer, por Amarante, passara um comunista com alguns volumes de conteúdo marxista e, para se livrar possivelmente da polícia, os lançara num canto da casa de papai. Algum delator infame, sabendo do incidente, passou informações à polícia, a qual, vasculhando a casa de papai lá encontrou os ditos volumes. Foi o bastante para incriminá-lo. Ora, defendia-se meu pai, como um jovem professor do interior, só por haver lido tais livros poderia ser indigitado como comunista? Por mera injustiça, papai teve que cumprir um ano de prisão na Penitenciária de Teresina.Relato mais pormenorizado desse período pode se encontrar seu livro Copa e Cozinha (SILVA, Cunha e. Copa e cozinha. Teresina: APL/Projeto Petrônio Portella, 1988). Tempos depois, papai se unira a mamãe. Vieram-lhe muitos filhos A vida era difícil. Praticamente, nada recebia das colaborações para jornais
Seus restos mortais, porém, permaneceram ali naquele canto do campo santo. Não há lápide, nem há epitáfio. Só a campa formada de terra pura. Há tantos anos estive lá, para lhe dar um adeus póstumo. O mesmo ocorrera com o falecimento de mamãe Nem lhes pude ouvir as últimas palavras, os derradeiros olhares amorosos, os peitos arfando e soluçantes.
Em 1947, conforme já mencionei acima, papai mudou-se para a capital. Fora lecionar a cadeira de geografia numa instituição pública de ensino de renome., o Liceu Piauiense Em Teresina, no início, ficara preocupado com a função de professor de um Liceu conhecido pelo alto padrão de seu quadro docente e do nível de seus estudantes. Papai, no entanto, se preparava bem e dispunha de uma excelente formação adquirida com os salesianos e na preparação para a vida sacerdotal. Seus alunos o receberam bem e logo apreciaram a sua alta competência e vocação para o magistério. Em 1951, defende tese para a cátedra de História do Brasil da Escola Normal Antonino Freire. ” Sua defesa de tese foi vitoriosa, mas precedida de muita luta, de muita injustiça e mesmo inveja ou perseguição visando a prejudicá-lo no concurso. No dia de sua defesa, eu, menino, estava presente. Papai, não sei por que razões, costumava me levar a certas eventos ou solenidades de importância para ele.
Aquele homem possuía uma enorme vontade de viver e de produzir nas duas atividades, o magistério e o jornalismo político. Nesta última atividade, quase sempre estava na oposição e essa opção política o colocava em riscos. Um deles custou-lhe uma cadeira de geografia no Liceu Piauiense por combater o governador de então. Sofreu privações.
Sua atuação jornalística se passou em períodos dos mais difíceis da política piauiense, que medeiam entre os anos trinta, quarenta e cinquenta. Estar na oposição, escrever contra os abusos do poder, afirmar verdades e denunciar podridões do governo eram uma temeridade.
Entretanto, aquele homem não se deixava intimidar, nem por capangas que, por vezes, o seguiam, à noite, quando regressava para seu descanso caseiro. Precavido, andava armado, pois sabia do que eram capazes adversários políticos.
Nunca vi aquele homem se queixar das “amarguras da vida” que, segundo ele, o tornariam poeta aos sessenta anos. Me dizia que a dor mais insuportável era a dor física. As dores morais ele não as temia, as suportava estoicamente. Possuía uma grandiosa qualidade, talvez a mais significativa : nos dava a impressão de que não envelhecia por dentro. Nunca se lamentava comigo do que hoje chamam de depressão na velhice. Todavia, contraditoriamente, costumava afirmar que nele havia uma tristeza que não o deixava nunca. Não conseguia atinar com a origem dessa tristeza interior.
Sua popularidade como jornalista foi crescente tanto entre os leitores em geral quanto entre intelectuais piauienses. Tornou-se membro da Academia Piauiense de Letras. Seu discurso de posse é uma das mais eloquentes peças oratórias que já tive o prazer de ler. Nele aquele homem sintetizou todo o seu pensamento de intelectual, de professor e de um estudioso profundamente ligado às coisas do espírito. Nessa oratória revela suas inegáveis qualidades de tribuno, de conhecedor da filosofia, da história, da cultura humanística e de seu inconfundível estilo claro mas de pensamento sempre elevado.
Escreveu livros, teses, dirigiu a Biblioteca Anísio Brito e Arquivo Público do Piauí, dirigiu o Liceu Piauiense, produziu um número incomensurável de artigos num largo período de, pelo menos, cinco décadas, artigos geralmente de natureza político-doutrinária e, nos últimos anos de vida, encontrava qualquer oportunidade para escrever versos, principalmente sonetos. Sem ter sido um grande poeta, seus versos, contudo, são plenos de substância filosófica, dignos de meditação, ou, como , uma vez, sobre eles afirmei: são versos que têm o sentimento à flor da pele, são, na maioria das vezes, verdadeiras “lições de vida”.
A lição desse grande e piauiense de Amarante – Cunha e Silva (1905-1990) -, foi de um varão que, acima de tudo, confiava na vida, na ação humana, no progresso da civilização, nas ciências e tecnologias. A sua lição, principalmente, foi a de um homem que tinha o dom da alegria perene de viver.
Lá no campo santo, jazem os vestígios desse homem de espírito extremamente associativo que, só pelas leis da natureza, se viu compelido a permanecer na solidão. No entanto, há um consolo, a sua solidão não é completa nem inapelável. No entorno da sua cova, tem ele por companhia a natureza viva que, de quando em quando, faz soprar uma leve brisa sobre ela e, à noite, faz descer, estonteantemente bela e doce, a luz do luar e o brilho das estrelas.