foto: acervo do autor
foto: acervo do autor

Na cidade

 

Ela se aproxima, vem oferecer um livreto de poemas e aforismos. “De minha autoria, um pequeno compilado de textos postados nas redes sociais”, explica, me entregando um exemplar. “Pra ajudar no orçamento e, claro, pra ajudar na transformação do mundo”.

Desinteressado, folheio o livreto.

Ela sorri, o sorriso cansado dos que labutam pela transformação do mundo, e diz: “Poemas são sementes que lançamos nos jardins; algumas frutificam, outras não. Mas o importante é semear”.

A ideia, vá lá, não é das mais originais. Acho, ela captou meu pensamento pois, subitamente, passa a falar em Nietzche, no Übermensch, sei-lá-mais-o-quê.

“Só três reais. Eu podia pedir mais caro, mas não ia vender. E minha intenção não é explorar, como fazem esses comerciantes aqui do centro.”

Não sei a quais comerciantes se refere. Talvez à loja de calçados atrás de mim, ou ao pipoqueiro, talvez ao carinha que vende água de coco em frente ao teatro. Para cortar o assunto, tiro dez reais da carteira. Ela me volta o troco, agradece e diz: “O Übermensch é forte e misterioso como as rochas”. Não compreendo suas palavras, afinal, filosofia não é minha praia e nunca li nada do tal Nietzche.  

Ela entra na Azarias Vilela, eu me distraio com o drone que sobrevoa o calçadão.  

***

 A sexta começou chuvosa, friorenta mesmo. Sem vontade de bater perna, me molhar ou, pior, sujar os tênis nas poças podres da rua, chamo um Uber. Vou conferir Coringa, delírio a dois, que tem dividido o público: há aqueles que odiaram e acharam desnecessária a sequência do longa, e os que gostaram. A princípio, não iria assistir: o ingresso anda caro, e é sempre melhor guardar os suados tostões para outro momento. Porém, a friagem pede um cantinho sossegado e quente, uma poltrona confortável, um filminho.

Então, eis-me aqui: na sala 04, por companhia dezenas de poltronas, todas vazias. Sensação esquisita estar em uma sala de cinema despida de público. Já assisti filme numa sala com dois espectadores, mas assim, sem ninguém, é a primeira vez. Enfim, como diz o outro, sempre tem a primeira vez.

Na R111, a telona ainda escura, reflito: provavelmente a turma do primeiro polo (que odiou e achou desnecessária a sequência do longa) está com a razão. E agora, José? O ingresso pagou, a pipoca comprou, o povo sumiu, a tarde esfriou, na cadeira já sentou... Agora, José, faça como aquela outra delirante: relaxa, e goza.

***

Ajeito a mochila na poltrona ao lado. Tenho dúvida se este ônibus entra mesmo na rodoviária. A plaquinha de “Fale ao motorista somente o indispensável”, contudo, me inibe. Eu sei, aprendi com o professor Marçal, que não existe pergunta idiota, embora a resposta muitas vezes o seja. Mas a danada da plaquinha, mais que a carantonha do motorista, me intimida. 

À frente, dois sujeitos papeiam.  

 — É, o Bastião conseguiu casar a filha.

— Uai, a Raimunda casou?

— A Raimunda não, sô. Ela já é casada com o Agildo e mora no Benfica. Quem casou foi a outra filha do Bastião, a Ângela.

— Ah tá.

— Ninguém mais acreditava que ela ia conseguir casar. Mas, como diz o outro, achou um chinelo velho pra descansar o pé.

— Foi com quem que ela casou?

— O Paulin Redondo.

— Conheço não.

— Claro que conhece, sô. Aquele gordão que trabalhou na loja de ferragem do meu sogro.

— Ah tá.

— Quem podia imaginar que, nessa altura do campeonato, a Ângela ia arrumar um homem pra casar.

— Porque bonita ela nunca foi, né.

— Aquela lá de longe é feia, e de perto parece que tá de longe. Bastião não tava muito inspirado quando foi fazer a menina, não.

— A Ângela tinha o quê, uns trinta e cinco?

— Que trinta e cinco, sô. Aquela lá já dobrou o cabo da Boa Esperança faz tempo. Deus que me perdoe, tá um bagaço. Judiada pela vida, e ainda assim achou um pra casar.

— O Bastião tem três filhas, né?

— Tinha, a mais nova morreu.

— Morreu? Sabia não.

— A Nora morreu na pandemia.

— Puxa, o vírus levou tanta gente boa, né.

— Que vírus o quê. A Nora tava trabalhando na roça, veio uma cobra e picou a perna dela. Coitada, das filhas do Bastião, era a mais bonita. Uma formosura, mesmo.

— E aquele sobrinho esquisito que ele criou igual filho?

— Quem, o Remela? Ih, rapaz, nem te conto que fim levou...

Pelo andar da carruagem - ou melhor, do ônibus – antes de chegar à rodoviária ficarei sabendo tudo sobre a família do tal Bastião.

***

Entro no Unida. Ajeito a mochila no compartimento da bagagem. A criatura sentada, ou melhor, escornada na minha poltrona olha pela janela fingindo não me ver. Plantado, de pé, ao seu lado, espero que ligue o desconfiômetro.   

Outros passageiros vêm pelo corredor. Preciso resolver logo o impasse. Pergunto se sua poltrona também é a vinte e cinco. Ela, enfim, vira-se para mim e, de um jeito irritante, pede: “Ah, moço, cê num deixa eu ficar na janela, não?”

Fecho a cara, como de costume, e retruco que quero a janela. Não tolero gente folgada, ainda mais gente folgada de sorriso irritante.

Com custo, ela pega a bolsa no chão. Passa por mim, me fuzilando com o olhar. Onde sentará, não me interessa.

Ajeito a poltrona, afivelo o cinto. Fico olhando as plataformas cheias de ônibus e pombos, vazias de gente.