Morre Moacy Cirne, aos 70 anos

Corpo será enterrado neste sábado em São José do Seridó, onde o escritor nasceu
   
RIO - Considerado o maior estudioso brasileiro das histórias em quadrinhos e um dos fundadores do movimento conhecido como Poema/Processo, o poeta, artista visual e professor Moacy Cirne morreu neste sábado, aos 70 anos, em Natal, por volta das 13h. O corpo será velado ainda hoje, a partir das 20h, no Centro de Velório do Morada da Paz, no bairro Lagoa Seca. O sepultamento será realizado em São José do Seridó, onde o escritor nasceu.
Moacy sofreu uma parada cardíaca pouco depois de ser submetido a uma cirurgia. O poeta chegou a ficar em coma induzido, mas não resistiu. Ele havia descoberto um câncer no fígado recentemente.
O poeta nasceu em São José do Seridó/Jardim do Seridó, em 1943 e é considerado referência até hoje quando se trata de Histórias em Quadrinhos no Brasil, de acordo com a editora da Universidade Federal Fluminense (UFF). Pioneiro na área, escreveu livros como “Bum! – a explosão criativa dos quadrinhos” e “Literatura em quadrinhos no Brasil”.
Seu livro mais recente, “Seridó Seridós”, foi lançado em 14 de dezembro e trazia, segundo o próprio autor, “um pouco de tudo: de críticas a memórias e fotos, de homenagens, poemas a listas de livros e filmes”.
Em 1967 participou do lançamento do poema/processo (em Natal e no Rio de Janeiro), movimento de vanguarda literária próxima das artes plásticas, ao lado de Wlademir Dias-Pino, Alvaro de Sá, Neide Dias de Sá, Anselmo Santos, Dailor Varela, Anchieta Fernandes, Falves Silva, Nei Leandro de Castro, Sanderson Negreiros, Pedro Bertolino, Hugo Mund Jr. e outros. Em seguida, Joaquim Branco, Sebastião Carvalho, José Arimathéa, Ronaldo Werneck e, mais tarde, Jota Medeiros e Bianor Paulino se incorporaram ao movimento, com seus poemas semiótico-gráfico-visuais, além dos projetos semântico-verbais.
Na década de 1970 escreveu a coluna EQ, juntamente com Marcio Ehrlich, no jornal carioca Tribuna da Imprensa. Foi editor da Revista de Cultura Vozes, de Petrópolis (1971-1980), e colaborador do suplemento Livro do Jornal do Brasil (Rio, 1972-76)
Professor (aposentado) do Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal Fluminense – onde lecionava disciplinas sobre Histórias em Quadrinhos e Ficção Científica, dentre outras – era famoso no Instituto de Arte e Comunicação Social da UFF por editar e distribuir um fanzine independente de uma única página, o Balaio Porreta. Cirne costumava organizar comemorações chamadas "Balaiadas", com distribuição de brindes como livros de arte e poesia entre os alunos do curso de Comunicação Social, para divulgar as edições especiais do Balaio. Desde 2007 o fanzine, que une textos provocativos, listagens de filmes, pensamentos e poesias, se transferiu para a internet sob a forma de um blog, o Balaio Vermelho. O fanzine Balaio foi um dos principais meios de divulgação no Rio de Janeiro das poesias eróticas do polêmico Chico Doido de Caicó, durante muito tempo considerado um personagem fictício e alter-ego do próprio Moacy Cirne.


POEMAS


A PRAÇA
 
joão da paraíba oferece a alguém,
com
muito
amor
e carinho,
"lábios que beijei", na voz de orlando silva

[in Cinema Pax, 1983]
 
            NÃO BEBA
            ESTE POEMA
                você
                pode
                virar
                um

            VAMPIRO
                
                [Versão original in Docemente experimental, 1988]
                
    RECOMEÇO
                Sei do sonho:
    procuro tua sombra na
        penumbra
            da memória líquida
    e nada encontro.
            A lua não é vermelha
                não é violeta
            não é verdecoisa
                mas
            os loucos da madrugada
    anunciam as primeiras águas da manhã.
                    Sei do sonho?
                Tua sombra pagã
            é um corpo que me foge
    das mãos cansadas de espantos
        e abismos.
            A árvore sonolenta
                anoitece os meus delírios.
            Não te vejo na claridade
                        do silêncio.
                O sol é um pássaro ferido
            na solidão
        de meus gestos de meus gritos
                    e a hora cruviana
            é uma graviola
                    grávida
                de aromas e carnes
        pronta para ser saboreada.
                Sei.
            Não foi um sonho.
    Como encontrar,
                então,
                na
            arquitetura fluvial
                de meus quereres,
                as linhas
            e curvas
    de teu corpo barrento-canela?
                Ah, não! Ah, sim!
                    Existe
                    um
                grande sertão
        nas veredas da minha paixão.
    E eu sei do sonho.
            Procuro tua sombra líquida
                e nada encontro.
                    A lua não é verdeluã
                        mas
                    tua sombra pagã
                anoitece os meus delírios.
                    Como encontrar,
                sol e solidão,
            a arquitetura colonial
        de teu corpo fluvial?
        Como encontrar,
    no silêncio de meus gritos,
tua sombra teus aromas tuas carnes?
                Sim,
                não.

                Tua memória vermelha
                
                é uma sombra grávida
                
                de morenezas e reentrâncias
                
                azuis.
            Docemente azuis.
                Barrentas e azuis.

    [ Originalmente publicado em
    Qualquer tudo (1993); republicado em
    Continua na próxima (1994) ]


    POEMA FINAL
    o homem só,
    velho e cansado,
    olha para a frente
    e nada vê.
    olha para os lados
    e nada vê.
    olha para o fim do mundo

            e nada vê.
            entre
            o espanto dos suicidas
            e
            o silêncio dos desamados,

    o homem cansado,
    velho e só,
    olha para o poema
    e nada vê.

            será
            que os sinos
            dobrarão por ele?


    [in Continua na próxima, 1994]