Monte Mor, de Almir Gomes de Castro

ilhAs trilhas abertas pelo sobrenatural

Jorge Tufic


Monte Mor, o novo da América, era o nome da antiga Baturité. Uma história que tem origem lá pelos adustos cafundós do século IX, estendendo-se aos anos quarenta do século XX, época marcada pelo carisma do Padre Cícero, pela afrontosa liderança política de Floro Bartolomeu e pelo renome de Capistrano

Nesse leque de figuras diferentes (havia ainda a influência dos truculentos coronéis do café), o escritor desenvolve sua história. Parece um mágico dando vida ao coelho que foge da cartola. Mais e mais saltam pessoas com personalidade própria, esculpidas num diálogo criativo, entre o erudito e o popular. Até o sapo-boi eu vi a hora falar.

Dos insólitos considerados anos depois como sendo da esfera da parapsicologia, convém adiantar que tais fenômenos já eram parte do cotidiano serrano, não podendo, assim, creditar-se aos meros artifícios (ou não) das coisas sobrenaturais. Virar bicho, onça pintada ou confundir algum estranho viandante com a figura do Capeta, tem mais a ver com os traumas da violência que assolava na terra dos índios, antigos donos do lugar, do que propriamente com a realidade dos pesadelos noturnos. Por trás da narrativa, contudo o autor onisciente fica à vontade sob o fluxo espontâneo da memória, atribuindo a cada uma de suas personagens o destino que fora reservado, por mais ingrato que ele seja.

A vingança é um dos traços do homem do Interior. Geralmente fica fria e calculada. Uma espécie de justiça intermediária entre a lentidão daquela que vem de Deus e a ausência às vezes secular ou definitiva da que se espera dos homens, aqui onde as diferenças de classe ainda mais se acentuam, prevalecendo o poder econômico nesses feudos de outrora. E aqui também se instalam o espaço e o tempo enfocados pelo autor, ao recriar situações dramáticas que levam a desfechos trágicos comumente insuspeitados. Alguns perfis da trama, em meio a tantos outros, nada os separam daquilo que fazem, por obrigação ou prazer.

Os incidentes da trama romanesca estão sempre ao pé da natureza:brutais ou conciliadores nas relações entre os seres humanos; paralelos ao canto e ao encanto dos pássaros silvestres; distantes nos estalidos das coivaras nas patas das feras incandescentes, misteriosos e anunciadores de eventos ruins nos olhos das corujas.

A sintaxe é breve, sabe que dispõe de material bastante copioso, vivência curtida na pele , muita poesia dos cantadores anônimos do sertão e da serra, cujo ponteio ecoa entre uma pausa e outra. A linguagem é carregada de significados ocultos num a dicção que se abranda ou se altera - e que vai decidir, afinal, a sorte de parceiros e subalternos; o timbre de voz é autoritário, algumas vezes manso, no jargão da humildade e da escorregadia subserviência. Patrões e empregados. Coronéis e jagunços. Todos se entendem, ou não. Até pelo olhar.

A partir da terceira parte do volume, como parte também de um ciclo de história de qualquer atividade extrativa, ou simplesmente rural, dos sertões e serras nordestinos, desagrega-se a família, fatalidade esta que já teve seu começo na debandada de filhos e netos, atraídos pelas metrópoles do Sul e Sudeste do País. Coronel Ramalho, o bom, o patriarca, troca a rede e a varanda pelo chamado conforto de um apartamento no Rio de Janeiro. Ali morre de um acidente, que tem uma alma suicida de amor a sua terra. Ninguém fica sabendo o real fatídico.

Leia, com atenção, esse romancista de "O Último Berro", "Mortalha de Chita", "Retalho de Almas", "A Chave do Outro Mundo", "Eu, Lampião, e, agora, dessa criação ímpar, "Monte Mor". Perceberá qualquer leitor que não estou a lhe contar nada, digamos, capítulo após capítulo, dessas fábulas aqui reunidas na textura de um belo romance, tarefa, aliás, que deixa muito a desejar para quem gosta de ler; fica, pois, sem o efeito do risco de juízos de valor sobre o imaginário das almas do outro mundo, nas quais eu acredito. Senão vejamos: um vento negro arrasta uma pedra gigante, que soterra a cratera magnética de Dona Lílica, mas antes uma força der origem desconhecida arrasta os últimos veteranos de Monte Mor para o abismo sem fundo. Eles deixam-se ir, sorrindo o mesmo sorriso de extrema felicidade.

Viradas as últimas páginas, a vida recomeça, novos primos celebram a aliança da comunidade rural, o milho recende na brasa. E as moitas da beira de estrada deixam de exalar a catinga de antes. Episódios comuns se repetem, frequentes vezes, de nuances fantasmagóricas, que então já passam despercebidas. Daí que, se algum tipo de moral da história tem que haver nesse preâmbulo, acode-me lembrar que Monte Mor, a exemplo de Macondo, de Gabriel García Márquez, "vai se ampliando e se tornando o mundo real, mas sem jamais perder o caráter mágico que é encarado por todos os seus habitantes como o normal de cada dia". É a verdadeira história da intuição fazendo a diferença.

Romance
Monte Mor
Almir Gomes de Castro

ROMANCE
LIVRO TÉCNICO
2010
152 PÁGINAS
R$ 30,00