9.7.2013 - F.
No lugar que marca o ponto mais alto da Serra de Sintra, a 528 metros de altura, erguia-se até Outubro de 1997 uma bonita Cruz de estilo manuelino, último exemplar de uma dinastia de “cruzes” cuja história remonta ao ano de 1522, em pleno reinado de D.João III, o Piedoso.
Do que se passou entre o século XVI e a fase de trabalhos de D.Fernando no Parque nada se sabe, e quantas cruzes terão sido colocadas no Penedo mais alto de Sintra ninguém sabe com certeza. Da mesma forma, ninguém conhece o formato e o tamanho da Cruz original.
O que na realidade se sabe é que no tempo de D.Fernando II, a cruz que então ocupava o pedestal – descrita como “tosca”, em carta da Condessa d’Edla dirigida ao seu neto, Mário de Azevedo Gomes – foi substituída por outra, réplica de uma pequena Cruz que existia junto ao Convento de Nossa Senhora da Pena, sendo o exemplar retirado colocado fora dos muros da Pena, no local onde se suicidara um homem.
A cruz colocada por D.Fernando foi derrubada – de acordo com a mesma fonte – por um raio, no dia de anos do Rei e da Rainha de Portugal D.Carlos I e D. Amélia de Orleães: 28 de Setembro de 1905 ou 1906. Assim, foi “gateada por meio de grampos de ferro”, que são visíveis nas fotografias existentes da Cruz, e colocada de novo no seu lugar, onde permaneceu até novo trair ser atraído pela montanha.
A cruz voltou a ser derrubada, o que obrigou à sua reconstrução. As três quadras que já então a acompanhavam é que não voltaram a ser inscritas em lápide de pedra, sendo substituídas pelo famoso soneto do escritor sintrense Francisco José Lopes Costa, e que hoje é visível no penedo do mesmo nome.
Segundo Rodrigo Simões Costa, em “Sintra e os seus arredores” (1941), as três quadras eram as seguintes:
Ei-lo, o vasto oceano, ouvindo-o creio
O murmúrio escutar da eternidade!
Eis campinas que ao céu seu canto elevam
Aqui o espaço, além a imensidade.
Puro e azulado o céu seu manto estende
Cujas franjas o sol no oceano doura,
E à voz de Deus, nas vagas que incendeia,
Apaga o sol a chama abrazadora.
E o mar, leão que ruge e a juba prostra,
E o sol, altivo com a brilhante luz,
Murmúrios, hinos, cantos inefáveis,
Tudo fenece aos pés da humilde cruz.
O soneto já referido, foi mandado gravar em placa de mármore e colocado no ponto mais alto da Serra por ordem do regente Carlos Oliveira Carvalho (o “Carvalho da Pena”). Diz assim:
"CRUZ ALTA
Longe das ondas turvas da maldade
Sobre este cume, entre rochedos nus
És bem o extremo apoio, que Jesus
legou por sua morte à humanidade.
Vai bem à tua simples majestade
Este lugar que te foi dado ó Cruz
Pois neste cimo é mais intensa a luz
E é mais intensa e bela a tempestade.
Feriu-te um dia o raio, e certamente
Mais duma alma estranhou, irreverente
Que o céu visasse o que une o céu à terra...
Mas eu sei bem que tu é que atraíste
A cólera do espaço, e assim cobriste
Com dois pequenos braços toda a Serra"
Em Outubro de 1997, a Cruz gateada voltou a encontrar-se com o Raio, e partiu-se em 1000 pedaços que se espalharam por entras os gordos blocos graníticos da Cruz Alta. E nunca mais voltou a ser erguida na Pena.
Durante anos os pedaços maiores da Cruz mutilada encontravam-se no local, sendo possível a qualquer visita recolhê-los...
Em Outubro do ano passado (10 anos após o incidente), a Sociedade PSML – entidade gestora dos Parques de Sintra, incluindo a Pena – a anunciou o início dos trabalhos de reconstrução da Cruz Alta, tendo em vista a criação de uma réplica a colocar no seu devido lugar.
Da cruz manuelina que serviu de modelo à que, em tamanho maior, foi erguida na Cruz Alta, existe uma bonita réplica, colocada a pedido da Condessa d’Edla no seu jazigo, localizado no Cemitério dos Prazeres em Lisboa. Este jazigo, desenhado pelo famoso arquitecto Raul Lino, é todo ele uma magnífica evocação da Pena, dos seus penedos, dos seus arvoredos e da sua altitude.
A Cruz Alta na Monografia do Parque da Pena, de Mário de Azevedo Gomes
"Quanto à Cruz Alta, tem muito velha tradição. Refere-se-lhe Tude de Sousa, no trabalho várias vezes citado, nos seguintes termos: «o local é assim conhecido por ter sido lá colocada sobre as rochas, no ano de 1522, reinado de D.João III, uma Cruz de pedra. Foi esta um dia derrubada por um raio mas substituída por outra no tempo de D.Fernando...». De um documento que possuo e já citei (Carta da Condessa d'Edla para o Autor) conclui-se que ainda ali existia, quando da intervenção de D.Fernando, uma cruz tosca que foi então retirada e posta fora do muro no sítio onde um homem se suicidara e sendo aquele substituída por outra - a actual - que é uma cópia da Cruz pequena que está junto do Palácio, em frente das antigas cocheiras (1). Também esta foi atingida pelo raio no dia de anos das majestades 28/IX (por 1905/1906) e teve que ser gateada por meio de grampos de ferro como hoje se vê. A gravação do poema de Francisco Costa, poeta sintrense, em placa de mármore, essa é que é do tempo e da iniciativa de Oliveira Carvalho - aliás parece discutível se lhe assistia o direito do empreendimento dada a excepcional posição do lugar".
Texto retirado da Monografia do Parque da Pena, do Prof. Azevedo Gomes (pág.236/237).
A Cruz Alta e o Soneto de Francisco Costa
"Graças à generosidade do prefaciador, que neste segundo livro encontrou «os méritos e a originalidade do PÓ», os dois volumes mereceram boas referências aqui, no Brasil e em Espanha, nesse tempo em que a estética literária ousava não confundir «a baixa preocupação com a actualidade» com «a sensibilidade moderna que se identifica com a corrente do seu tempo». Apesar disso, o VERBO AUSTERO, em Portugal, poucos leitores teria fora do meio católico se nele não se destacasse um soneto dedicado à CRUZ ALTA - aquela que um dia atraiu o raio sobre si e assim cobriu:
com dois pequenos braços toda a Serra.
Essa expressão poética de um facto real teve a sorte de impressionar o regente florestal de Sintra, que se dizia ateu e se devotava totalmente à defesa da Serra. Por iniciativa sua, o soneto, gravado em mármore, foi gravado ali, no penhasco de granito, em local muito visitado:
longe das ondas turvas da maldade.
E assim essas catorze linhas se tornaram as mais lidas de quantas publiquei em papel.
A saúde recuperada fora-me impondo, entretanto, uma série de odes «sem louvor da natureza redescoberta», como se diz no prefácio e como se canto no Prelúdio na Serra:
«Do fundo vale aos píncaros da Serra,
em tudo achei um confidente amigo.
Por isso agora, ó natureza imensa,
em confissão te digo
toda a alegria ou dor que me vida me pertença.»
Muitos desses poemas foram meditados e escritos entre as árvores do Parque da Pena, onde me foi dado consolidar a minha cura, em passeios inolvidáveis para os quais a minha irmã Dina convidava a mais distinta das suas amigas: a bela e intrépida rapariga que se enamorava do poeta, doente ainda, e agora não hesitou em unir-se a ele - para sempre."
Em "Última colheita", edição do autor, (Sintra, 1987), pág.72-73."
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