MESTRE CHICO E A LITERATURA DO PIAUÍ
Por Elmar Carvalho Em: 09/07/2015, às 05H44
ELMAR CARVALHO
I
Na quinta-feira passada, à noite, fui ao Salipi, onde o poeta Francisco Miguel de Moura estaria autografando o seu livro Literatura do Piauí, 2ª edição, publicado pela editora da Universidade Federal do Piauí – UFPI. Pensei que fosse lançamento solene, com palestras de apresentação e tudo mais, mas na verdade tratava-se tão-somente de venda e autógrafo da obra. Ao chegar, além do escritor e de sua esposa Mécia, encontrei o historiador, jurista e articulista João Borges Caminha, que foi meu professor na Universidade Federal do Piauí, na qual ele lecionava Direito Agrário.
É ele meu confrade na Academia Campomaiorense de Letras – ACALE. Foi chefe do Setor Jurídico do Banco do Brasil no Estado do Piauí. Seu filho Marco Aurélio Lustosa Caminha, procurador do Trabalho, foi meu colega no curso de Direito. Fui apresentado por Chico Miguel ao juiz do Trabalho Carlos Wagner Araújo Nery da Cruz, seu amigo e leitor contumaz e voraz, que adquiriu meu livro Confissões de um juiz, que se encontrava exposto no estande da EDUFPI. Tive a satisfação de lhe autografar o exemplar.
O lançamento de Literatura do Piauí será no próximo dia 20, sábado, às 10 horas, em solenidade conjunta da UFPI e da Academia Piauiense de Letras – APL, conforme convite que tenho em mãos, emitido pelo reitor José Arimatéia Dantas Lopes e pelo presidente Nelson Nery Costa. O evento acontecerá no auditório da APL. Serão, também, lançados na oportunidade os livros Estudos de História do Piauí, 2ª edição, de Odilon Nunes, e O sertão piauiense em pé de guerra, 1ª edição, de Laécio Barros Dias, ambos publicados pela APL e integrantes da Coleção Centenário.
Conheci Chico Miguel de Moura no final da década de 1970, quando ele esteve rapidamente no lançamento do livro Galopando, obra coletiva de que fazíamos parte Paulo Couto Machado, Rubervam Du Nascimento, Josemar Nerys, Paulo de Athayde Couto e este diarista. Os três primeiros residiam em Teresina, e os dois últimos, em Parnaíba. Na verdade, para ser mais exato, o Rubervam morava em Timon e trabalhava em nossa capital, na Delegacia do Trabalho. Era o início de uma amizade literária e integração entre autores parnaibanos e teresinenses. Creio ter sido ainda a estreia literária de alguns desses poetas, inclusive a minha.
O livro era uma brochura simples, mas bem cuidada, com miolo impresso em mimeógrafo, porém a capa era uma bela obra de arte, uma xilogravura feita com todo esmero pelo artista plástico Fernando Costa, tragicamente falecido nas cinzas de um triste carnaval, poucos anos depois. Cheguei a conhecê-lo em Parnaíba, em um evento cultural. Em sua memória, escrevi uma crônica elegíaca, em que lamentei a sua morte precoce, quando ele ainda estava por alcançar o auge de seu talento. Galopando trazia ilustrações de Fábio Torres, Zé Alfredo e Fernando Costa. Foi editado graças aos esforços de Nonata Nerys, irmã de Josemar, e Socorro Soares.
Passando a residir em Teresina a partir de agosto de 1982, ao assumir o cargo de fiscal da SUNAB, tornei-me amigo de Chico Miguel e de seu irmão afetivo Hardi Filho, grande poeta recentemente falecido. Algumas vezes estive na casa deles, em momentos alegres ou comemorativos. Em 1986, o velho, franco e franciscano Chico iniciou a luta para reativar a União Brasileira de Escritores do Piauí, de cuja campanha fiz parte. Foi o seu primeiro presidente, nessa nova fase. Deu-lhe vida, através de publicações e eventos, e lhe deu existência legal, com razão social, CNPJ e demais aparato burocrático.
Fui seu sucessor, na gestão 1988/1990. Com a ajuda de meus companheiros de diretoria e o apoio decisivo do deputado Humberto Reis da Silveira, conseguimos que fosse insculpida em dispositivo da Constituição Estadual a obrigatoriedade do ensino de Literatura Piauiense, passando a nossa literatura a ser, portanto, disciplina obrigatória (art. 226). Por razões que desconheço, mas que não acho aceitáveis ou justificáveis, esse mandamento constitucional nunca foi efetivamente executado pelo Governo do Piauí.
II
Membros do Jornal Inovação, sob o cajueiro de Humberto de Campos, vendo-se, da esquerda para a direita, no 1º plano: Bartolomeu Martins, Vicente de Paula (Potência), Elmar Carvalho e Canindé Correia; 2º plano: Danilo Melo, Francisco (Neco) Carvalho, Diderot Mavignier, Franzé Ribeiro, Sólima Genuína, Bernardo Silva, Reginaldo Costa e Paulo Martins; 3º plano: Jonas Carvalho, Israel Correia, Porfírio Carvalho, Wilton Porto, Alcenor Candeira Filho e Flamarion Mesquita. Percebe-se, nesta fotografia, a felicidade dos retratados com esse reencontro, posto que vários moravam em outros estados e municípios. Hoje, a maioria já não reside em Parnaíba. Os literatos desse grupo são todos da Geração Marginal, do Mimeógrafo ou 70.
Ao longo de muitos anos pude constatar que o poeta Francisco Miguel de Moura foi um grande pesquisador, tanto da história de nossa literatura como também de teoria e novos recursos da linguagem literária. Percebi que ele tinha a mente aberta às mais diferentes propostas e soluções. Sem ser propriamente um cerebralista, nos moldes de um João Cabral de Melo Neto, escravo do trabalho e da “transpiração”, buscou sempre as inventividades e as coisas boas da chamada vanguarda.
Nesse aspecto, poderia dizer que, em muitos textos e em algumas de suas fases, foi um experimentalista, na busca incessante da renovação do seu fazer literário, tanto na prosa como na poesia. Creio que talvez ele tenha sido o primeiro (ou pelo menos um dos pioneiros) a utilizar os postulados do concretismo no Piauí, mormente com a prática do verbi-voco-visual. Nesses textos fez uso de um discurso contido, mas com a observância da sonoridade das palavras e da visualidade ou disposição das palavras na página em branco, por vezes formando uma espécie de carmen figuratum. Mas sem descurar do conteúdo, de que sempre foi cioso.
Fora a sua contribuição pessoal, escrevendo os seus textos e publicando os seus livros, foi também um notável editor, que teve o desprendimento de publicar contos, crônicas e poemas alheios. Foi o primeiro a publicar uma antologia de contos, na qual reuniu os mais importantes ficcionistas da época, que depois se firmaram em nossa literatura de todos os tempos. Essa obra coletiva foi intitulada Piauí: terra, história e literatura (1980), em cujo texto introdutório o seu organizador (FMM) esclarece:
“A aparição dessa primeira antologia ou seleção da história curta, no Piauí, mostra o quê? Até então ninguém tinha pensado nisto, ou, se pretendeu realizar, não pôde transpor os obstáculos. Mostra que – tento responder – a literatura em prosa existe, entre nós, como em poesia. Sendo pioneira, é por esta reunião que, no futuro, se aquilatará documentariamente o esforço de duas gerações. E suas pequenas mas válidas conquistas. Aqui temos uma ideia do enfoque do homem piauiense, através da ficção miúda.”
Publicou, durante sete anos (1977-1984), a revista Cirandinha, num total de dez números. Esse importante periódico literário acolheu diversos autores piauienses, divulgando-lhes os poemas, os contos, as crônicas e outros textos. Cirandinha também publicou entrevistas e depoimentos de intelectuais do Piauí e do Brasil, como Celso Barros Coelho e Ferreira Gullar. Eu mesmo tive a satisfação de ter sido colaborador de um dos seus números, tendo um de meus poemas sido estampado numa de suas páginas, quando eu ainda era um bisonho poeta interiorano.
Publicou ainda, sob a forma de encartes, importantes obras de nossa literatura, como a novela Amarga Solidão, de O. G. Rego de Carvalho, e a peça teatral Reino do Mar sem Fim, de Francisco Pereira da Silva, campomaiorense, um dos maiores teatrólogos brasileiros. Além disso, a revista publicava notícias literárias e tinha uma postura combativa contra a ditadura militar, de maneira especial contra as eleições indiretas e a censura.
Nos anos 1990, Chico Miguel, na qualidade de presidente do Conselho Editorial da Fundação Cultural Monsenhor Chaves, continuou em sua vocação de editor. Como se estivesse involuntariamente lhe seguindo as pegadas, durante quase cinco anos fui o editor e presidente do Conselho Editorial dessa Fundação. Tive a oportunidade de contribuir para a publicação de importantes livros, entre os quais a primeira edição de Os Literatos e a República: Clodoaldo Freitas, Higino Cunha e as Tiranias do Tempo, de Teresinha Queiroz, A poesia piauiense no século XX (FCMC/Imago), antologia organizada por Assis Brasil, e o monumental Dicionário Histórico e Geográfico do Estado do Piauí, que consumiu 30 anos de pesquisa de seu autor Cláudio Bastos. Durante meu período, a importante revista literária e cultural Cadernos de Teresina foi publicada de forma regular. A cada quatro meses, essa revista e vários livros eram lançados em verdadeira festa literária. Esforcei-me para que Cadernos de Teresina tivesse uma boa programação visual e para que os livros tivessem bonita capa e fossem bem editados.
Como todos reconhecem, Chico Miguel, em sendo talvez o último polígrafo do Piauí, é também um importante crítico literário, graças a seus estudos acadêmicos e esforço pessoal contínuo. Já deu provas disso através de vários textos e livros, sobretudo da obra em que analisou e interpretou a romancística de O. G. Rego de Carvalho. Coroou esse mister literário quando publicou a primeira edição de Literatura do Piauí.
Agora, como uma enorme contribuição à literatura piauiense, a editora da Universidade Federal do Piauí (EDUFPI) lhe publica a segunda edição, revista e aumentada. A obra traz um volume de informações muito grande. Enfoca os grandes autores do passado e os que estão se firmando no presente. Em sua reconhecida franqueza e sinceridade, não faz concessões às amizades pessoais.
Em sua didática organizacional, optou por dividir a nossa literatura em gerações, de acordo com os critérios adotados, e devidamente explicitados nos textos que antecedem cada grupo, nos quais são feitos o histórico e análise de cada geração. São estudados, sobretudo, os literatos, em sentido estrito, mas também são incluídos os principais historiadores, dramaturgos e críticos literários.
Podemos dividir didática ou esquematicamente o livro nas seguintes partes: Teoria, Gerações Históricas, Modernidade, Atualidade, A Crítica e Antologia da Crítica. No segmento Gerações Históricas incluiu três gerações e mais o modernismo, neste abrigando os poetas que tangenciaram o modernismo, ou que o praticaram de forma esporádica ou tímida, ou apenas circunstancialmente. Essa escola, como FMM reconhece, só chegou ao Piauí tardiamente. Considera José Newton de Freitas como sendo o verdadeiro introdutor do verso moderno em nosso estado.
Em “Modernidade”, após concluir na parte teórica, com o crítico Wilson Martins, que depois do Modernismo não mais existem escolas literárias, mas apenas movimentos, incluiu três gerações: a Meridiano (da qual foram referidos M. Paulo Nunes, Afonso Ligório Pires de Carvalho, O. G. Rego de Carvalho, A. Tito Filho, Fontes Ibiapina, Assis Brasil, Álvaro Pacheco e H. Dobal), a do CLIP (da qual foram principais representantes Francisco Miguel de Moura, Hardi Filho, Herculano Moraes e Magalhães da Costa) e a Marginal (também conhecida como Geração 70 ou do Mimeógrafo). Estuda os principais membros dessas gerações. Informa que a última geração surgiu pioneiramente no interior do estado, e não na capital; que, “tanto em Picos quanto em Parnaíba, duas publicações eram feitas em mimeógrafo: Voz do Campus e o Linguinha”.
Pertenço à Geração Marginal ou 70, e estou na companhia, entre outros, dos seguintes literatos: Alcenor Candeira Filho, Paulo Machado, Cineas Santos, Durvalino Couto Filho, Nelson Nunes, João Pinto, José Ribamar Garcia, Rubervam Du Nascimento, Menezes y Moraes, Oton Lustosa e William Melo Soares. Entre os mais jovens, foram citados Dílson Lages Monteiro e Lara Larissa. Ainda, pertencentes a essa geração, foram mencionados os teatrólogos Aci Campelo, Wellington Sampaio e Afonso Lima. Por fim, foi referida a Geração do Milênio, da qual foram citados os escritores e poetas Ana Miranda, Adrião Neto, Beth Rego, Carlos Alberto Gramoza, Chico Castro, Carvalho Neto, Climério Ferreira, etc. Uma curiosidade: o poeta Rubervam Du Nascimento foi mencionado como sendo também violinista, faceta que lhe desconhecia.
Os verbetes são mais ou menos longos, conforme o merecimento atribuído aos autores. Não foram arrolados apenas dados biográficos e obras, mas foram emitidos comentários críticos, ainda que eventualmente sucintos. Os principais literatos foram contemplados com até três textos de sua autoria, de modo que Literatura do Piauí é ainda uma cuidadosa seleta. Seguindo o seu pioneirismo, FMM achou por bem incluir na parte final da obra uma “antologia da crítica”, na qual foram coligidos artigos e ensaios de diferentes autores. Evidentemente, conforme suas preferências, gosto pessoal e idiossincrasias, o leitor poderá entender que determinado literato deveria ser excluído, e que outro deveria ser citado. Mas isso sói acontecer em qualquer listagem de “maiores” ou “melhores”, sobretudo em campo tão subjetivo como é a arte literária.
Em suas quase quatrocentas páginas de análises, comentários críticos, história e informações diversas, Literatura do Piauí é uma monumental obra, que prova, definitivamente, de uma vez por todas, que a literatura piauiense existe, e que não cabe mais nenhuma dúvida quanto a isto.