Memórias de papai: sede de sabedoria
Por Cunha e Silva Filho Em: 14/09/2009, às 14H23
Cunha e Silva Filho
Andávamos juntos, com passos apressados, numa rua de um bairro suburbano carioca, a Vila da Penha, área da Leopoldina. Não me recordo se era na ida para a minha modesta residência, ou se era na volta para o ponto de ônibus onde iríamos aguardar o coletivo que nos levaria ao Centro do Rio. Do Centro ele iria pegar um táxi para o hotel onde estava hospedado, no Flamengo, junto com outros jornalistas piauienses, inclusive A. Tito Filho (1924-1992). Estava de passagem, porquanto iria viajar, com seus colegas jornalistas, de avião para Porto Alegre, onde iriam participar de um Congresso Brasileiro de Jornalistas. Era o ano de 1968, mês de julho. Papai estava com sessenta e três anos; eu, com vinte e dois.
Aquela era uma manhã de sol moderado. A rua, longa, parecia mais uma avenida. Conversávamos alegremente. Pai e filho. De repente, ele me perguntou:
- Você tem sede de sabedoria, filho?
Achei a pergunta um tanto estranha e pra mim difícil de responder na bucha.
- Talvez, papai. Talvez... Mas, por que essa pergunta?
- Meu filho, sempre tive a sede do saber, de acumular, não bens materiais, porém cultura, conhecimento. Esse desejo é para mim quase uma obsessão. Saber é o que me persegue, o que me faz bater o coração, o que me estimula a viver – acrescentava ele. O saber dá sentido à minha individualidade. Contraditoriamente, como tenho inveja daquelas pessoas simples, rudes, quase analfabetas, que vejo no meio rural, ou mesmo na cidade, nos bairros humildes. Gente simplória, mas de coração alegre. Gente sem as preocupações dos espíritos cultos e complexos, cheios de problemas de natureza existencial, de conflitos pessoais. Nós, intelectuais, dizia falando de si -, levamos nossas vidas confrontadas com os males da civilização, procurando meios de solucionar questões intrincadas, polêmicas, de ordem filosófica, política, econômica, religiosa, bélica, ideológica, enfim, temas que angustiam os homens, especialmente o homem contemporâneo.Produzir – prosseguiu ele – , escrever artigos, talvez livros, ser, em suma, reconhecido. Esse é um dos objetivos de minha vida, Você não tem, filho, vontade enorme de desenvolver-se intelectualmente, de querer escrever, quem sabe, poder até publicar?
Fiquei calado, pois, no fundo, julgava até desnecessária aquela interpelação paterna. Confesso mesmo que ele, naquela época, ainda não vislumbrava ou imaginava algo mais ambicioso que pudesse me acontecer. Por outro lado, entendo e relevo-lhe esta circunstância: como poderia ele ter certeza de que um simples professor ginasiano, vivendo com dificuldades, já pai de filho, pudesse ascender profissionalmente, galgar posições mais destacadas no magistério? Poucos professores da minha geração conseguiram posições mais proeminentes no ensino ou alcançaram posição no ensino superior ou nas instituições de destaque do ensino médio.
- Meu filho, isso é coisa de intelectual – me afirmava, não mais durante a nossa caminhada em direção ao ponto de ônibus no Rio de Janeiro, mas, certa vez, tempos depois, em Teresina. Lembro-me de que era numa despedida minha de regresso ao Rio de Janeiro, na rodoviária de Teresina.
Por ser um pouco tímido, muita coisa não lhe confessava das minhas aspirações íntimas, sobretudo as relacionadas à vida intelectual.Era óbvio que papai me queria ver numa posição mais elevada do prisma cultural. Por isso, não se cansava de me recomendar que estudasse línguas e tentasse fazer o mestrado, como também se queixava, às vezes, de que eu escrevesse pouco pros jornais. Na realidade, passei um bom tempo sem mandar um artigo sequer pra Teresina. Era provavelmente falta de tempo pra escrever ou mesmo falta de disposição para tanto.Dava muitas aulas e ainda tinha que dar conta, no tempo que me sobrava, para cursar Letras.Escrever, para mim, sempre implicava concentração, vontade mesmo de pôr algo no papel e que valesse a pena ser lido.
Tudo, no entanto, tem o seu tempo. “Il y a temps pour tout, pour le travail, pour le plaisir” - ressoava nos meus ouvidos aquela gravação de vozes francesas das lições do Assimil.
- Você deve tentar escrever pra jornais aí do Rio, estilo não lhe falta. Você não pode ser tímido. Mande a timidez à favas! - doutrinava papai através de suas cartas encorajadoras.
Aquele comentário dele segundo o qual os intelectuais eram diferentes diante de certas situações do cotidiano me deixava um pouco melindrado na minha vaidade ingênua ou juvenilmente egocêntrica, já que, da minha parte, desejava-lhe gritar bem alto: - Papai, eu também sou dedicado à cultura, pretendo também produzir, escrever livros, artigos, ensaios, ser conhecido e respeitado. Me perdoe, filho, isso são coisas de intelectuais, não leve a mal. Somos assim mesmo – repetia ele outras vezes.
Eu via essas declarações esporádicas como uma maneira de ele mostrar alguma vaidade pessoal, consciente de seu papel de educador, de jornalista e intelectual admirado por muita gente. Ao mesmo tempo, a sua assertiva me parecia reduzir minha auto-estima recalcada ou mesmo narcísea. Por que havia ele de me falar aquilo se, ao lado dele, se encontrava um jovem professor do ensino médio cheio de sonhos e até de veleidades literárias?
O que, na verdade, queria então ouvir dele seriam palavras animadoras no sentido de que seu filho também se considerava um jovem intelectual, pelo menos no conceito de sua juventude vaidosa. Só mais tarde, em cartas, percebia que ele implicitamente me colocava no grupo de intelectuais, ou melhor, como potencial candidato ao meio intelectual. Todavia, no momento em que falava de si e das características inerentes a um homem de letras, confesso que sentia uma pontinha de decepção, como se quisesse lembrá-lo de que ali estava alguém que se sentia interiormente digno de pertencer ao incerto e bem provável ilusório mundo da intelectualidade. Os jovens são, por natureza, vaidosos, e talvez por isso se explique, paradoxalmente, a minha vontade abafada de lhe externar meus sentimentos íntimos de pertencer ao mundo de papai.
Com o tempo, e intensificando-se a nossa correspondência durante mais de duas décadas, aos poucos, eu me ia revelando a ele. Escrevia artigos, traduzia poemas ingleses, textos em prosa do francês. Suponho que, à altura do final da década de oitenta, já se havia consolidada a nossa grande amizade pessoal e intelectual. A correspondência virou trocas constantes de elogios, de comentários mútuos entre o que eu escrevia e o que ele escrevia. Os comentários se tornaram apreciações literárias, que nos reanimavam reciprocamente.
Papai se foi em 1990. Como na minha vida tudo veio tarde e com muito sacrifício, papai não pôde acompanhar algumas vitórias minhas no campo intelectual. Que pena! Voltei à universidade, fiz o mestrado, o doutorado, publiquei livro e dei continuidade à minha produção literária. Profissionalmente, tornei-me professor titular de língua inglesa do Colégio Militar do Rio de Janeiro.Antes desenvolvi, durante anos, a atividade docente no ensino médio particular, municipal e estadual. Ingressei no magistério superior particular, lecionando durante quase dez anos língua inglesa e literatura brasileira nos cursos de Letras e de Comunicação Social da Universidade Castelo Branco, Rio de Janeiro.Tenho material produzido que, pelo menos, me renderia uns quatro livros.
Agora que não o tenho mais ao meu lado, talvez, meu querido pai, não precisasse mais da minha resposta à sua interpelação: - Meu filho, você tem sede de sabedoria?