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 MÁRTIR DA CASTIDADE

Miguel Carqueija

 

         Resenha do livro “Céu sobre o pântano” (a vida de Maria Goretti), de Alfred Mac Conastair, C.P. (título do original norte-americano, “Lily of the marshes” – Livraria Agir Editora, Rio de Janeiro, 1955 (segunda edição) – tradução de Helena Ferraz Rodriguez.

 

         Santa Maria Goretti, nos altares desde  24 de junho de 1950, canonizada pelo grande Pio XII (antes beatificada em 27 de abril de 1947) continua sendo um exemplo autalíssimo para a juventude, para as meninas e moças. Tendo em vista o crescente desrespeito à dignidade da mulher e mesmo à integridade física de crianças e adolescentes. A obsessão do sexo libertino e promíscuo, chegando à violência física e ao assassinato das vítimas, é um triste sinal dos tempos modernos, ainda que algumas pessoas teimem em classificar a Idade Média como a “idade das trevas”.

         Existe a Maria Goretti brasileira, embora não levada aos altares: Aída Cúri, assassinada no Rio de Janeiro, em 1958. Uma história comovente, que motivou intensa campanha de justiça por parte do jornalista Davi Nasser.

         Voltemos a Maria Goretti. Esta santa menina era filha de um casal de camponeses profundamente católicos, Assunta Carlini e Luigi Goretti. Nasceu Maria Teresa Goretti em 16 de outubro de 1890 na aldeia de San Pietro de Corinaldo, no norte da Itália. Naquela época e naquele século havia excesso de pobreza por lá — como o testemunhou, aliás, o anjo bom de Turim, São João Bosco, fundador das Escolas Salesianas.

         A história da pequena Maria e seus três irmãos e seus pais, é uma história de miséria e sofrimento, que levou a família a morar junto a um pântano insalubre para sobreviver, e onde Luigi logo perdeu a vida. O trabalho era extenuante, o lucro inexistente, a exploração esmagadora, a fome onipresente. As crianças nem calçados podiam ter, mesmo durante o frio impiedoso. E nessas difíceis condições mesmo assim Maria, robusta por natureza, tornou-se uma menina precocemente atraente. 

         “Ali estava ela, pensava, uma menina crescida, com quase dez anos, ocupando seu lugar na família, fazendo a limpeza e cozinhando as refeições, merecedora da confiança do pai e da mãe.”

(capítulo VIII)

         “O inverno chegou em Ferriere, trazendo o frio e a neve, a chuva e o granizo. Os canais transbordaram inundando os campos, espalhando o seu limo viscoso, e os pântanos estavam alagados. (...) Maria pensou morrer de frio. Seus dedos estavam azulados e seus pezinhos cobertos de frieiras; seu esburacado vestido não podia aquecê-la, e os ventos gelados varriam-lhe as pernas nuas sem dó nem piedade. Achava que nunca mais saberia o que era sentir calor. Se ao menos eles pudessem acender um pouco de fogo, porém a madeira custava dinheiro e eles não tinham dinheiro, e o que era pior, havia muito pouca comida.”

(capítulo IX)

         A família mudara-se para Ferriere, um pântano, sendo obrigada pelas circunstâncias a se associar na mesma residência com os Serenelli — o pai e os dois filhos. Não eram pessoas amáveis ou recomendáveis. Giovanni era um homem sujo e debochado, que passou a explorar a família Goretti após a morte de Luigi, vítima da insalubridade da região. Um dos filhos de Giovanni foi embora mas o outro, Alessandro, permaneceu. Era o futuro assassino de Maria Goretti. 

         A mensagem da menina Goretti, em sua simples mas firme e inabalável vé em Deus através de Jesus Cristo, da Igreja Católica, vai na contramão da mentalidade moderna, ou melhor “moderninha”, que chega a propagar a cínica frase para mulheres que venham a ser atacadas sexualmente: “relaxa e goza”. Muito pelo contrário, e mesmo sendo uma menina de onze anos, sabendo ser pecado o que Alessandro pretendia, Maria Goretti sustentou três lutas corporais com o assediador, que na última apunhalou a sua vítima repetidas vezes.

         Alessandro foi preso e Maria recolhida ao Hospital Orsanigo, em estado lastimável, em estado lastimável, com o coração perfurado, mas permaneceu milagrosamente viva o suficiente para falar com seus entes queridos e perdoar o seu assassino. Mostrou, cabalmente, que a castidade se defende até com a vida, como 56 anos depois faria Aída Cúri.

         O autor Conastair fez uma biografia romanceada, imaginando cenas e diálogos com os diversos personagens para dar vida á história que, em sua substância, é fato real.

         Muitos anos depois do fatídico dia 5 de julho de 1902, o já arrependido Alessandro (que terminou seus dias num convento, como humilde jardineiro, tendo porém escrito o livro “Eu matei uma santa”) prestou depoimento no processo de canonização da menina heroína. Para estabelecer o grau das ações de Maria fizeram perguntas bastante específicas, como:

 

         P – Disse ela: “Sim, sim!”, antes que você a apunhalasse?

         R – Nego categoricamente que a menina, aterrorizada com a minha violência, tivesse dito: “Sim, sim!”, como se desse a entender: “Não me faça mal, eu consinto!” Ao contrário, ela disse: “Não, não!” — em seu tom mais decidido, persistindo em sua recusa mesmo depois de eu tê-la atacado, dizendo: “Deus não quer! Você vai para o inferno!”

         P – Procurou Maria defender-se dos golpes enquanto você a estava apunhalando?

         R – O que vou dizer é a pura verdade! Maria nunca tentou se defender de meus golpes, lutou apenas para cobrir o corpo e proteger a sua dignidade.

         P – Poderia Maria ter salvo a vida? Você a teria matado mesmo se ela tivesse consentido?

         R – Maria certamente poderia ter salvo a vida. Se Maria tivesse cedido aos meus desejos, eu nunca teria experimentado em meu coração a raiva intensa que sentia quando a via, e nunca, por conseguinte, lhe teria feito mal algum. Eu nego ter-lhe tirado as roupas para poder vibrar-lhe os golpes com mais facilidade. Meu objetivo era somente satisfazer as minhas paixões.

         P – Por que Maria não salvou a vida?

         R – Quaisquer que fossem seus sentimentos a meu respeito e em relação às minhas propostas, seu motivo de recusa foi claro: “Não! Não! Não! Isto é pecado! Deus não quer! Você vai para o inferno, Alessandro!”

         P – Por que é que você veio aqui testemunhar?

         R – Porque a culpa é toda minha! É meu dever! Eu devo reparar o meu erro e fazer tudo o que estiver ao meu alcance para glorificá-la. A culpa foi minha porque eu me deixei dominar por uma paixão brutal. Maria estava perfeitamente certa quando resistiu a mim para preservar sua inocência. Era uma menina pura. Naqueles tempos as meninas não eram como agora; eram simples, boas, particularmente no campo. Maria era muito boa, e para preservar sua pureza ela preferiu cair sob o punhal de um assassino. O erro esteve todo do meu lado.”

 

         O autor do livro retoma a palavra para resumir a sequência do depoimento cabal de Serenelli. Como sabemos, este em seu assédio buscava, é lógico, as oportunidades em que a menina estivesse sozinha dentro de casa. Pervertido pela má educação recebida do pai — que inclusive lhe comprava revistas pornográficas, já existentes naquela época — Alessandro não podia aceitar a recusa da parte de uma mulher — mesmo que fosse apenas uma menina, caracterizando-se aqui até mesmo a pedofilia. E foram três os assédios físicos, sem falar de tentativas anteriores de sedução. Vejam este significativo parágrafo do Padre Conastair:

        

“Quando a força falhou pela segunda vez, sua cólera e determinação de possuí-la a todo custo aumentaram ainda. Então tomou a resolução de, se falhasse pela terceira vez, matá-la. Maria não poderia de maneira nenhuma duvidar de suas intenções quando viu o punhal em suas mãos. A luta foi violenta e prolongada. Maria não cedeu, e era forte demais para que ele pudesse subjugá-la; então ele matou-a como planejara.”

 

         É espantoso que Maria Goretti sobrevivesse ainda muitas horas, com o coração transpassado, falecendo no dia 6 de julho. Porém talvez seja mais notável que o seu assassino, muitos anos depois (1937), após haver cumprido sua pena, tenha pessoamente pedido perdão a Assunta — e que esta, em 24 de junho de 1950, tenha se tornado a primeira mãe da História a assistir a canonização da sua filha, realizada por Pio XII.

         Durante anos e anos, antes da canonização, Maria Goretti operou sublimes milagres, tendo inclusive aparecido a Alessandro, quando ele ainda estava preso, oferecendo-lhe lírios. Também apareceu à sobrinha Isolina Goretti, quando noviça, encorajando-a para uma cirurgia à qual deveria se submeter.

         Santa Maria Goretti — Lírio do Pântano — rogai por nós.