Mário Faustino e os arigós do Piauí
Por Carlos Evandro Martins Eulálio Em: 31/05/2023, às 10H58
[Carlos Evandro Martins Eulálio*]
Meu Caro Bené é o título do livro que reúne as cartas de Mário Faustino a Benedito Nunes, publicado pela Secult/PA, com organização, apresentação e notas da profa. Lilia Silvestre Chaves. (1) As cartas de Mário datam de 1950 a 1962. Elas refletem não apenas os laços de amizade que uniam o poeta ao filósofo, mas também marcas que o identificam como um dos notáveis poetas de vanguarda dos anos [19]50, época de maior efervescência literária no País, após o modernismo de 1922.
Sobre as cartas, afirma Lília Silvestre Chaves: Algumas cartas falam de poemas que estava escrevendo na ocasião, descrevem seu pensamento acerca de sua criação poética, enfim, revelam suas mais íntimas ideias sobre o amor e a literatura [...] e minuciosos relatos de viagens, comentários sobre leituras e preferências artísticas em geral (FAUSTINO, 2017, p. 23).
As três primeiras cartas do livro, datadas de 27/12/1950, 29/01/1951 e 16/02/1951, foram escritas em Teresina, onde o poeta se encontrava, em visita aos seus familiares. Mário retornou a Belém no dia 1º de março de 1951. As outras cartas que constam no livro, foram escritas das seguintes localidades: da Califórnia (USA), onde em Covina o poeta fazia o Curso de Língua e Literatura Inglesa (2) (1951/1952); de Stuttgard-Alemanha (28/09/53), quando em passeio pela Europa; do Rio de Janeiro (1955/1962), onde fixou residência; de Santiago do Chile (19/09/1957), e de Nova York (1960/1961), onde trabalhou no Departamento de Informações Públicas da ONU.
Na primeira carta, enviada de Teresina, o assunto predominante diz respeito a impressões que lhe causaram a cidade, sua vida cultural, e aos contatos que manteve com algumas pessoas, sobre as quais se mostra surpreso por encontrá-las no Piauí. De início faz referência ao Caderno de Letras Meridiano.(3)
Diz o poeta: Agora a surpresa: sabes que aqui tem gente culta, inteligente, moderna e de espírito à beça. Se eu arranjar, vou te mandar os três números de uma revistinha de novos daqui: Meridiano. Em seguida, sem citar o nome, Faustino se refere ao poeta Hindemburgo Dobal Teixeira (H. Dobal – 1927-2008): Tem um rapaz que escreve uns belos poemas, muito simples, muita poesia e muito bom gosto, traduz otimamente ingleses e americanos (inclusive o Eliot e Cummings). Eu dizendo tu não acreditas. Desse mesmo rapaz, que não só tem talento, mas também uma boa cultura, li um interessantíssimo artigo sobre o egoísmo inglês e a generosidade dos saxões e dos latinos, intitulado “D. Quixote versus Robinson Crusoé”. Esse rapaz cita Santa Teresa, Lope de Veja, Quevedo, Calderón, Shakespeare, Unamuno, Bunyan, John Donne, com uma seriedade espantosa. Só tu vendo.
O encontro dos dois poetas aconteceu na casa de H. Dobal, intermediado pelo médico e escritor Clidenor de Freitas Santos. Na mesma carta de 27/12/1950, Mário retoma o assunto acerca do Caderno de Letras Meridiano: Nessa revista tem gente que escreve falando em Claudel, Péguy, Rilke, Goethe, uma coisa incrível! Este Norte é mesmo o tal. Tem muita gente estudiosa por toda parte, até no Piauí!!!
Sobre o engenheiro Cícero Martins (1909 – 1988), projetista e executor de obras importantes em Teresina, como a antiga ponte sobre o rio Poti e o Hospital Getúlio Vargas, escreve: Aqui há um clube deles, chamado Clube Telúrico Euclides da Cunha. Vê só! O presidente dele – Cícero Ferraz de Sousa Martins – sujeito que conhece quase tudo o que o Mendes, (4) por exemplo, conhece - em uma entrevista àquela revista - disse da finalidade e do caráter do clube, de um modo bem gozado. Vai ver, depois. Estou te vendo a rir, mangando destes arigós: mas haverias de ver, se estivesse aqui. Aliás, esse termo arigós (grifo nosso), atribuído aos intelectuais que Mário Faustino conheceu no Piauí, onde esteve em 1951, antes de viajar para os Estados Unidos, é empregado na carta de uma forma carinhosa, com sua habitual dose de ironia e bom humor.
Eis o que diz o poeta a respeito do dr. Clidenor de Freitas Santos, médico psiquiatra, professor, escritor e político: Conheci também um sujeito maravilhoso, um psiquiatra – Clidenor de Freitas Santos – que está construindo um sanatório de loucos como há poucos no Brasil, aqui em Teresina. Tem ele uma vasta cultura. Emprestou-me montes de livros sobre Shakespeare. Fala de qualquer assunto de uma maneira fantástica. Queria que visses a biblioteca dele. Tem e lê o que há de mais moderno em criação e crítica. Uma discoteca melhor que a do Meira. (5) Bethoven quase completo, muito Bach, muito Mozart, muito Stravinsky, muitos modernos. Uma beleza.
Sobre o sanatório de loucos, a que se refere o poeta, trata-se do Sanatório Meduna, construído pelo dr. Clidenor de Freitas Santos (1913-2000), e inaugurado em 21 de abril de 1954, uma iniciativa que inovou o tratamento psiquiátrico no Nordeste brasileiro. Foi desativado em maio de 2010, pela própria direção do hospital.
Mário também esteve com o dr. José da Rocha Furtado (1909-2005), médico e político brasileiro, primeiro governador do Piauí, eleito por voto direto, após o fim do Estado Novo. Diz o poeta sobre esse grande líder político da época: Queria que conhecesses o Rocha Furtado, governador daqui. Um grande rapaz. Fala alemão, inglês, francês, italiano, espanhol. Conhece e lê o latim, está estudando grego. Tem uma cultura enorme. Queria te ver conversando com ele sobre Goethe, do qual ele tem imensa bibliografia. A cultura dele é toda germanizada. Só sai Nietzsche, Keyserling, Spengler, Goethe, Schiller, Novalis, Hoelderlin, Kleist, Klopstock, etc. etc.; coisas de que eu não penso nada. Uma cultura de alemão, mesmo, de monstro. E que sujeito decente! Um gentleman! De uma honestidade incrível! Católico, apostólico, romano e praticante! Foi ele que me levou para assistir a uma Missa do Galo maravilhosa.
Sobre o celebrante da missa, escreve: A missa foi celebrada por um padre negro que é um colosso. Dedica-se à matemática e à física – é professor dessas matérias nos colégios daqui – mas tem uma cultura geral monstruosa. É o padre “Zé Luiz”. (6) Nunca vi sujeito tão humilde. Fez um sermão que eu quisera ter estenografado para te mandar. (7)
O poeta finaliza a carta, reiterando seu fascínio com tudo que conheceu no período de sua estada no Piauí: Concluindo, Bené, por aqui tem gente da classe do Mendes ou do Bitar. (8) Se estivesse aqui seria ótimo. Ficarias besta só em encontrar nesta “Chapada do Corisco” uma quantidade de bibliotecas três vezes mais ricas que a do Mendes.
Em alguns trechos desta e das outras cartas, Mário fala de suas leituras em Teresina: Ilíada (Estou no segundo canto da Ilíada. Uma maravilha); A tempestade, de Shakespeare (Que coisa, senhor! É de chorar de alegria); The Marchant of Venise, de Shakespeare (O mercador de Veneza - Outra beleza). Sobre música: Aqui a novidade é que tenho ouvido muita música (Bach, Mozart, Beethoven, Chopin, Debussy, Stravinsky...) Cinema: Digo-te, que continuo na mesma vida por aqui. Vi mais alguns bons filmes, continuo leituras sobre cinema.
Onde quer que estivesse, Mário Faustino se mantinha atento e aberto a tudo que dizia respeito à literatura e às artes em geral. Além de compulsivo, Mário era um leitor atualizado, procurando expandir o seu repertório de conhecimentos sobre literatura, sempre à caça de novos valores no campo das letras. Para tanto, aproximava-se daqueles que, como o próprio Mário, admiravam e produziam com qualidade a poesia, o teatro, o cinema e a boa música.
*Carlos Evandro M. Eulálio, professor e crítico literário, é membro efetivo da Academia Piauiense de Letras, ocupante da Cadeira 38, tendo como patrono o poeta popular João Francisco Ferry.
*Notas
1. FAUSTINO, Mário. Meu caro Bené: cartas de Mário Faustino a Bendito Nunes / Mário Faustino; organização, apresentação e notas Lília Silvestre Chaves. Belém: Secult-PA, 2017.
2. Mário Faustino conquistou mediante concurso internacional uma bolsa de estudos em Língua e Literatura Inglesa, (1951/1953), promovido pelo Institute of International Education, dos Estados Unidos, no Pamona College, Covina – Califórnia.
3. A revista Meridiano surgiu com o propósito de encontrar novas alternativas para o projeto modernista em nosso meio. Tinha ainda a finalidade, conforme o crítico literário M. Paulo Nunes, de acompanhar o ideal estético-formal do pós-modernismo de 1945. A esse respeito, ele diz: “[...] quando surgiram várias revistas em diferentes estados do Brasil, [...] nós fundamos O Meridiano, dentro desse espírito, de procurar fazer eco às ideias do modernismo e lançar uma proposta fundamental de renovação da literatura piauiense” (EULÁLIO, Carlos Evandro M. Discurso de posse. Teresina: Nova Aliança Ed. 2022, p.27). O título Meridiano, segundo relatou o romancista O. G. Rego de Carvalho ao escritor Halan Silva, adveio de uma revista que circulou na Bahia e que teve a participação de Jorge Amado e de Da Costa Andrade, que era piauiense (SILVA, Halan. As Formas Incompletas: apontamentos para uma biografia. Teresina: Oficina da Palavra / Instituto Dom Barreto, 2005, p. 78).
4. Francisco Paulo do Nascimento Mendes, ensaísta e professor de Literatura Portuguesa da Universidade Federal do Pará, autor do ensaio “O Poeta e a Rosa, primeira notícia sobre a poesia de Mário Faustino”, publicado no Suplemento Arte-Literatura, da Folha do Norte, Belém-PA, no dia 25 de abril de 1948.
5. Augusto E. de Bastos Meira Filho, engenheiro, historiador, escritor e jornalista paraense. (Nota de Lília Silvestre Chaves, in Op. cit. 2027, p. 31)
6. Conforme informações do professor e historiador Paulo Libório, obtidas no Arquivo da Arquidiocese de Teresina, Monsenhor José Luiz Barbosa Cortez (Padre Zé Luiz) nasceu em União-PI, no dia 21/4/1904. Ingressou no Seminário em 15/2/1928 e sua Ordenação presbiteral aconteceu em 6/12/1936. Era Mestre de Cerimônias de nossa catedral, Capelão e professor do Colégio das Irmãs Catarinas de Teresina, professor do Liceu Piauiense, da Escola Normal Antonino Freire, do Seminário e dos colégios Leão XIII e Diocesano. Foi membro do Conselho Arquidiocesano, do Conselho Estadual de Cultura do Piauí e Sensor Diocesano para espetáculos públicos. O título de Monsenhor foi-lhe dado pelo Papa João XXIII. Faleceu em Teresina no dia 15 de dezembro de 1981.
7. Processo de escrita formado de sinais abreviativos convencionais que permitem transcrever as palavras quase tão rapidamente quanto são pronunciadas. O mesmo que taquigrafia.
8. Orlando Bitar, professor de Direito Constitucional da Faculdade de Direito do Pará, poliglota e homem de vasta cultura. (Nota de Lília Silvestre Chaves, in Op cit, 2017, p. 31).