Elmar Carvalho


Recebi e-mail do poeta, escritor e crítico literário José Neres, vazado no seguinte teor: “Vasculhando as inúmeras ruas virtuais dessa sempre surpreendente internet, encontrei seu blog. Li vários textos e vejo, como sempre, um estilo primoroso e claro. De quebra ainda encontrei uma bela crônica sobre Humberto de Campos, com direito a citar Tribúzi, meu amigo Lourival Serejo e o Instituto Geia. Isso despertou em mim a vontade de reler seus livros, o que começarei a fazer este fim de semana.” Em minha resposta, disse-lhe que já havia tratado da literatura maranhense em outro registro deste Diário, o do dia 7 de junho deste ano, sob o título de O Pantheon de Caxias. Tempos atrás, tive a agradável surpresa de encontrar estampada na revista De Repente, de grande circulação, uma crítica sobre a minha poesia, em que o professor José Neres analisava, de forma percuciente e arguta, as metáforas e outras figuras de estilo dos meus versos.
 
Consegui o seu endereço, através do repentista Pedro Costa, editor da revista, e lhe enviei uma carta e livros de minha autoria. Em resposta, disse-me ele que certa ocasião, numa livraria, creio que de São Luís, quase por acaso, encontrou ele o meu livro A Rosa dos Ventos Gerais, em modesta e singela (1ª) edição da EDUFPI, perdido no meio de vários livros, evidentemente mais vistosos e atraentes; começou a folhear o volume, de forma salteada, lendo um poema aqui, outro ali. Segundo ele, surpreendeu-se com a qualidade dos textos, e resolveu adquirir o exemplar. Em consequência, escreveu o pequeno ensaio literário, que muito me desvaneceu, e que faz parte de minha fortuna crítica, parte publicada na 2ª edição de Rosa dos Ventos Gerais, parte recolhida em Lira dos Cinqüentanos, embora de forma não exaustiva.
 
Após essa boa notícia maranhense, encontrei, na caminhada de sábado, o amigo Paulo Nunes, proprietário do Botequim, que me disse ter a professora universitária Glória Soares deixado em seu bar um pacote para este cronista. No domingo, fui buscar a encomenda. Tratava-se de dois livros da autoria de João Berchmans Carvalho Sobrinho, cujo nome é uma homenagem a seu tio paterno, parente e amigo de meu pai, que era para ter sido o meu padrinho de crisma, o que terminou não acontecendo em virtude do corre-corre e desencontros da vida. Por feliz coincidência, as obras – tituladas “Músicas e Músicos em São Luís: subsídios para uma história da música no Maranhão” e “Texto e Contexto: a comédia musical Uma Véspera de Reis” – são voltadas para a grande música erudita maranhense.
 
João Berchmans é de estirpes barrenses e regenerenses. Seu pai, o doutor Geraldo Majella de Carvalho, além de juiz de Direito, foi um orador de largos recursos, um articulista de muita capacidade argumentativa, um mestre da conversação e um compositor talentoso, a julgar pela bela valsa, de sua autoria, que ouvi por entre as campas do cemitério da Ressurreição, no dia de seu sepultamento, entoada pela cantora lírica Conceição Farias, que se fazia acompanhar pelos acordes de um violão dedilhado pelo Geraldinho Carvalho, irmão do autor dos livros. Dr. Geraldo Majella e seu irmão Sebastião Aécio de Carvalho, renomado médico piauiense, ambos barrenses, casaram-se com duas irmãs, nascidas em Regeneração.
 
Os dois livros são produtos de um acurado trabalho investigativo, realizado pelo autor em acervos de Lisboa (Fábrica da Sé e Biblioteca Nacional) e de São Luís (Arquivo Público do Maranhão – Inventário João Mohana). O lastro bibliográfico de sua pesquisa é de muito peso e qualidade. As pesquisas também foram empreendidas em mares internéticos e em acervos musicológicos do Piauí e Maranhão. O fato é que não realizou obras meramente de divulgação, condensando informações de outros livros, mas analisou e interpretou documentos, carreando novidades, aclarando dúvidas e informações controvertidas ou desencontradas, dessa forma contribuindo criativa e decisivamente para lançar luzes sobre a história musical do Maranhão.
 
Sendo João Berchmans doutor em Música, área de musicologia, pela Universidade do Rio Grande do Sul, com a tese “A Música Religiosa de Leocádio Rayol (1849 – 1909) e sua relação com o Maranhão do século XIX: um estudo musicológico com transcrição, análise e perspectiva histórica”, defendida em dezembro de 2003, e tendo larga experiência no ensino superior de música, seja como professor ou como dirigente de unidade letiva, além de ser instrumentista e compositor, pôde realizar duas obras, que não contemplam apenas a história da música maranhense e não fornecem somente dados biográficos de seus principais compositores, o que já seria de grande monta, mas emitem comentários críticos e analíticos sobre as obras musicais enfocadas, graças aos seus vastos conhecimentos teóricos e práticos, amealhados em longos anos de leitura, reflexões, estudo, magistério, manejo instrumental, regência e composição.
 
Músicas e Músicos em São Luís: subsídios para uma história da música no Maranhão”, traz uma contextualização histórica em geral e na parte específica de história musical, tanto em relação ao Brasil como a Portugal, mormente porque essa obra remonta aos primórdios da arte musical do Maranhão, reportando-se inclusive à fundação de São Luís, sob o signo do catolicismo, com direito a missa e entoações de Te Deum. As duas obras analisam o gosto musical e os costumes da época, tecendo comentários sobre os gêneros musicais mais apreciados.
 
Através de sua leitura, ficamos sabendo que na segunda metade do século XIX a música teatral era o gênero mais praticado e apreciado na capital ludovicense. A ópera, sem dúvida, era a arte mais cultivada em São Luís, bastando que se diga que, em 1856, foram encenadas cerca de 56 (cinquenta e seis) dessas composições. De tudo isso podemos concluir que a capital maranhense tinha acentuado refinamento cultural e estava em franca efervescência musical, com caráter nitidamente europeizado, embora alguns compositores já mostrassem um viés algo voltado para o nacionalismo, pois muitos eram bem informados e estudaram e atuaram em outras paragens, sendo que o compositor e regente Francisco Libânio Colás ostentava expressiva circularidade, com músicas suas tendo sido apresentadas em Recife, Salvador, Belém, Manaus, Rio de Janeiro, inclusive quando da inauguração do Teatro da Paz, na capital paraense. Foi figura proeminente do proscênio musical pernambucano, durante muitos anos.
 
Os dois livros de João Berchmans Carvalho Sobrinho lançam luzes sobre os grandes compositores e maestros da música erudita maranhense, sobretudo as sacras e as teatrais, como óperas e comédias musicais, estas permeadas de matizes populares, pela utilização de maxixes, lundus, polcas e tangos, porém em orquestrações e arranjos eruditos. O autor resgata a trajetória, a música e a biografia de figuras do porte de Antônio Luiz Miró, Vicente Ferrer de Lyra, Leocádio Rayol, Francisco Libânio Colás, João Pedro Ziegler, Elpídio Pereira e Antônio Rayol. Por intermédio de seus livros, acima nomeados, podemos imaginar uma época de fastígio e fascínio musical, em que orquestras sinfônicas executavam músicas maviosas, celestiais, tão diferentes das acachapantes, degradantes “músicas” de hoje, recheadas de tigrões, cachorras e eguinhas pocotós, com apelo à sexualidade mais vulgar e brutal.