No “Livro do desassossego” confessa Fernando Pessoa não estar satisfeito com os versos que escreveu (frag. 217) e que sua obra era má, o que se apresentava como “uma das tragédias da alma”, – obra imperfeita e falhada, reitera ele, eis o máximo da tortura e da humilhação do meu espírito, e pergunta: então, por que escrevo? – e tem uma sua resposta extraordinária: “porque, pregador que sou da renúncia, não aprendi ainda a executá-la plenamente. Não aprendi a abdicar da tendência para o verso e a prosa. Tenho de escrever como cumprindo um castigo. E o maior castigo é o de saber que o que escrevo resulta inteiramente fútil, falhado e incerto”.


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Meu coração é um pórtico partido
Aberto excessivamente sobre o mar.
Vejo em minha alma as velas vãs passar,
E cada uma passa num sentido.

Escreveu ele.
Cito de memória, portanto falível.
Estou em Tiradentes, quase sem livros.
O dia amanheceu triste.
Choveu à noite, dormi mal. Inquieto.
Desassossegado.
O excesso de calma desta cidadezinha me inquieta.
Pensei no que significa a vida durante a noite.
Minha vida.

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Pessoa, o grande, retirou de si todas as dúvidas, se viu despido das suas mais caras ilusões. Rompeu com a evolução de seus espelhos, confessou todas as suas mentiras, exteriorizou todas as vestes de sua alma, livrou-se do que não sentia, do peso de seus segredos, mentiu a si próprio revelando a sua verdade, exprimiu-se para errar, nas suas técnicas de sonhos e de consolações. Sofreu não ter mais tantas esperanças vãs. Releu algumas páginas do que escreveu e se decepcionou. Suas velas vãs lhe fogem, cada uma num sentido.

 

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Mas, que mais queria ele?
Depois de ter escrito os mais belos versos da língua portuguesa, a que maior altura desejava ele se alçar?

 

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Tão cedo passa tudo quanto passa!
Morre tão jovem ante os deuses quanto
Morre! Tudo é tão pouco!
Nada se sabe, tudo se imagina.
Circunda-te de rosas, ama, bebe
E cala. O mais é nada.

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Escreveu.
Talvez estivesse pensando nos seus amores fracassados, na solidão de sua extraordinária alma; talvez estivesse pensando no seu Marinheiro, “ainda não deu hora nenhuma...” e as três donzelas velam a virgem morta, um resto vago de luar... e as mãos não são verdadeiras nem reais... mas mistérios que habitam na nossa via, a nossa vida... “às vezes, quando fito as minhas mãos, tenho medo de Deus... Não há vento que mova as chamas das velas, e olhai, elas movem-se... veio um dia um barco... veio um dia um barco... – sim sim... só podia ter sido assim... veio um dia um barco, e passou por essa ilha, e não estava lá o marinheiro, de eterno e de belo apenas o sonho... só viver é que faz mal... não rocemos pela vida nem a orla das nossas vestes... não, não vos levanteis... isso seria um gesto, e cada gesto interrompe um sonho... neste momento... ”

“As horas têm caído e nós temos guardado silêncio.
Por mim, tenho estado a olhar para a chama daquela vela.
Às vezes treme, outras torna-se mais amarela, outras vezes empalidece.
Eu não sei por que é que isso se dá.
Mas sabemos nós, minhas irmãs, por que se dá qualquer cousa?...”

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No “Livro do desassossego” ele conta que não está satisfeito com os versos que escreveu e que sua obra era má e se apresentava imperfeita e falhada.
Talvez estivesse fazendo imaginação e outridade. Uma grande alegria, cheia de repouso e liberdade. Tardei sempre, disse. Desejo apenas conseguir o que os outros conseguiram. “Nunca tive a arte de estar vivo ativamente. Fui o devaneio do que quis ser. O meu propósito foi sempre a ficção do que nunca fui”, conclui ele.
“Tive desejos, mas foi-me negada a razão de tê-los”.
O sonho...

 

Rogel Samuel é Doutor em Letras e Professor Aposentado da Pós da UFRJ. poeta, romancista, cronista, webjornalista.