Literatura que pensa o tempo

Rosemary Conceição dos Santos

Pensar literatura e suas relações com a sociedade é uma forma de problematizar a arte literária, deixando de vê-la, apenas, como produto da criatividade humana, para trazer à tona os significados por ela construídos ao longo do tempo. Produto do ambiente em que se vive, seu conteúdo permite identificar o vínculo do autor com seu tempo, a posição que o mesmo ocupa na sociedade, os valores estéticos de uma época e a “alma coletiva” das nações, ou seja, sua espiritualidade. Produto da manipulação humana da linguagem, também cria identidades, influenciando e reproduzindo realidades sociais.

Neste contexto, subjetividade e percepção são mediadores entre realidade e obra, cabendo à criatividade alterar conteúdos apreendidos, tornando a literatura um processo dialético. Escrevemos, portanto, para conversar com o outro. Lemos, por conseguinte, para responder ao que nos escreveram. Por adição, mesmo quando um escritor elabora um enredo que se passa em um mundo futuro, o faz segundo as concepções que adquiriu de sua realidade. Condições objetivas da realidade contemporânea fornecem conteúdo suficiente para pressuposições do que pode se consolidar no futuro. Autores que pensam a realidade, portanto, sob o crivo da reflexão, são capazes de sinalizar fatos que alteram o que está ocorrendo, ao mesmo tempo em que repõem, no lugar destes, outros produtos sociais. Muitos personagens, advindos da ficção, são modelos que exemplificam relações sociais e indivíduos reais. E isto também torna a literatura base para pensar e problematizar a realidade social.

No primeiro caso, a literatura pode servir como referencial para pesquisar um dado no tempo e no espaço. No segundo caso, pode suscitar debates e pesquisas sobre como se configura a ótica da arte para discutir a realidade social. Entretanto, toda vez que se inicia uma obra literária, reconhecer os limites e as possibilidades de interpretar o mundo real, através de uma realidade imaginada, é tão trabalhoso quanto priorizar o tipo de personagem e as caracterizações que esta deva apresentar. Daí afirmar que nenhum literato escreva com intenções científicas e sociológicas pré-estabelecidas. A boa literatura as refletes, sem premeditações.

Foi Madame de Staël (1766-1817) a primeira a escrever sobre a relação literatura e sociedade. Posteriormente, propondo-se a enfrentar os problemas levantados por ela, surgiram Benjamin (1892-1940), Gramsci (1891-1937), Lukács (1885-1971) e Bordieu (1930-2002). No Brasil, Silvio Romero (1851-1914), José Veríssimo (1857-1916) e Araripe Júnior (1848-1911). Nos dias de hoje, Antonio Candido e Roberto Schwarcz. Diferentes enfoques, tão diversos quanto as obras que abordaram. Que refletiram o vivido, concedendo alma, história e memória ao mundo. Que em 2010 nossa literatura pense o nosso tempo.

(Rosemary Conceição dos Santos é Pós-Doutora em Cognição, Leitura e Literatura pela USP-RP)