LIMA  BARRETO  E  OS  AMIGOS  PIAUIENSES

 

                                                                     

 

 

 A amizade de Lima Barreto com o piauiense João Luís Ferreira nasceu nos bancos da Escola Politécnica do Rio Janeiro.  Lima abandonou o curso no segundo ano, enquanto João o concluiu, tornado-se engenheiro civil e, posteriormente, governador do Estado do Piauí. Tema que abordei na crônica “Lima Barreto no Piauí”, inserido no meu livro “Imagens da Cidade Verde.”  

   

    Essa amizade também foi estendida a Félix Pacheco, irmão de João Luís. Félix, jornalista, poeta, deputado federal e senador da República, foi quem conseguiu o emprego na Polícia Civil para Carlindo, irmão de Lima. E a seu pedido o ajudaria depois, noutra circunstância, como se vê nesta carta, de 1919. Nessa ocasião, Lima, mesmo alquebrado e triturado pelo alcoolismo que o levava a delírios e a internações, não se descuidava do futuro dos seus irmãos.  Ei-la, na íntegra:           

        “ Meu caro Félix.

           Saúde, ou melhor: melhoras progressivas. 

           Recebi o “O Pendão da Taba Verde” (livro de poesias do Félix Pacheco), mas ainda não o li. Ando em dobradura terrível que até não me dá tempo para flanar. É escrever, é ir ao Tesouro acabar com a minha cobiçada aposentadoria, etc, etc.

       Agradeço-te muito o abraço que me mandaste e os cumprimentos também pelo “Gonzaga de Sá”; ( “Vida e Morte de M.J. Gonzaga de Sá, terceiro romance de Lima, editado em 1919) e, pelas notícias do João, orgulho-me muito que o tenhas lido de um só fôlego.

Estamos, nessas coisas espirituais, tão separados um do outro que só uma forte amizade, a pairar soberana sôbre essa divergência, poderia explicar êsse açodamento de tua parte na leitura do meu opúsculo.

        Dito isto eu te pedia muito um grande (favor). Informa-me meu irmão Carlindo de Lima Barreto, guarda civil de segunda classe que tu és recomendação poderosa para o chefe de polícia. Caso não te constranja de qualquer forma, rogava-te que o recomendasses ao Aureliano, (Chefe da Polícia)para ser promovido  à primeira. Garanto-te que ele não é como eu, “em coisa alguma”. É disciplinável, disciplinado etc. etc.

         Em te sendo possível, podes mandar qualquer resposta, para mim, à Rua Major Mascarenhas, 26 – Todos os Santos – Rio de Janeiro.

        Antecipando os meus agradecimentos, sou etc. etc.  -  Lima Barreto.”                                                                                                       

                    

                         (Transcrita do Tomo II, pp. 197/198, da Correspondência do escritor, in vol. XVII das Obras Completas, org. pelo seu biógrafo Francisco de         Assis Barbosa, com a colaboração de Antônio Houaiss e M. Cavalcanti, Ed. Brasiliense, SP,  1956).

 

    Esta outra carta, ao também piauiense Esmaragdo de Freitas, jornalista, magistrado e terceiro ocupante da cadeira N° 1, da Academia Piauiense de Letras, foi em resposta  à resenha que ele havia escrito sobre seu primeiro livro  “Recordações do Escrivão Isaías Caminha”.

                         

    Nela, Lima Barreto, com a transparência e a honestidade intelectual que lhe eram características, expôs de peito aberto sua  inquietação existencial, e a gênese do livro. E, por consequência, desmoraliza os apressados e despeitados críticos da época, que enquadraram a obra como sendo um simples romance à clé, numa tentativa de desmerecê-la. Morreram e não conseguiram. Pois, os personagens tomados por modelos, algumas figuras ilustres do jornal “Correio da Manhã”, assim como o próprio jornal, foram descaracterizados, em forma de caricaturas. E nisso o genial mulato de Todos os Santos era mestre dos mestres.  Pois, “Recordações do Escrivão...” vai além desses personagens. E como bem disse Lilia Moritz Schwarcz: “O romance trazia de tudo um pouco – critica social, fofoca literária, bastidores do jornalismo; o suficiente para chamar atenção e causar escândalo.” (in “Lima Barreto: Triste Visionário”, p. 227, Ed. Cia das Letras, 2017).

 

         Vale também citar a observação do renomado escritor Enéas Athanásio:

 

          “Classificaram-se as suas obras como “romans à clef, destinados  apenas à promoção de sensações imediatistas. Os tempos mostraram, entretanto, que, mesmo com o desaparecimento dos modelos, as personagens continuam vivas, como acontece nas verdadeiras obras literárias. E a crítica demonstrou que tais romances só não constituem pura ficção para quem lhes conhece os modelos”.  ( in “O Mulato de Todos os Santos”, Editora e Gráfica Veja Limitada).

 

       Eis a dita carta:

 

      “Em 15 de outubro de 1911.

 

      Amigo Senhor Esmaragdo de Freitas.

 

     ”Li o seu artigo sobre o meu livro “Recordações do Escrivão Isaías Caminha”, com muito interesse e grande satisfação. É de ver bem como fiquei alegre que pessoa que não era das minhas relações e inteligente como se revela no artigo, falasse a meu respeito com o calor e a bondade como o senhor fez.  Aqui, no Rio, onde nasci e me tenho feito, onde também tenho relações, não houve quem tratasse do meu volume com a abundância e a sagacidade que há no seu artigo. Ninguém quis ver no livro nada mais que um simples romance à clé, destinado a atacar tais e quais pessoas; os que gostaram foi por isto, os que não gostaram foi por isto também. Há  alguma cousa a mais do que isso no meu modesto volume, suponho; e essa suposição marchou mais para a certeza desde que li o seu trabalho. Compreenda , meu caro Senhor Esmaragdo, que, dada a minha obscuridade nativa e também (para que não dizer) a minha côr, se o meu livro não fosse capaz dele  por si romper caminho, não seriam os nossos amigos dos jornais que haviam de ajudá-lo a fazer. Arriscava-me  a passar sem ser notado, desanimar, portanto, e ir fazer companhia ao rol dos incapazes de raças que a nossa antropologia oficiosa já decretou.

        O meu fim foi fazer ver que um rapaz nas condições do Isaías, com todas as disposições, pode falhar, não em virtude de suas qualidades intrínsecas, mas, batido, esmagado, prensado pelo preconceito com seu cortejo, que é, creio, cousa fora dele. Não sei como me saí da empresa, mas o seu artigo diz-me que bem. Se lá pus certas figuras e o jornal, foi para escandalizar e provocar a atenção para a minha  brochura.  Não sei se o processo é decente, mas foi aquêle que me surgiu para lutar contra a indiferença, a má vontade dos nossos mandarins literários.  Confesso-lhe isto à puridade e com prazer, não só porque o seu artigo me tocou, como também, não porque, sinto que seremos amigos.

       Observa o senhor que há no meu livro pobreza de mulheres. É um defeito e o maior que tenho como escritor e particularmente como romancista. Para lhe explicar êsse meu desinterêsse pelo sexo feminino, seria preciso explicar-lhe a minha vida doméstica, no colégio interno, na Escola Politécnica, porque  (é um elemento) eu frequentei cinco anos essa escola e fiz quase dous. Em Mecânica Racional, levei quatro “bombas”, por isso deixei.

 

      Essa explicação não atenuaria o defeito e talvez não lhe interessasse. Eu ainda teria muito que lhe dizer, mas temo falar muito de mim; entretanto , por último, lhe adianto que sou bem mulato, sem disfarce, claramente  e à vista de todos.

 

        Há uma outra cousa no seu artigo que eu queria falar longamente: é sobre o casamento  de Isaías. Ele se casou com uma rapariga branca, como o senhor supôs. Aceito e explico por diversos motivos: a) para que os filhos saíssem mais brancos que ele; b) porque, devido a causas sociais, os pais não se esmeram na educação das raparigas de côr, e não encontrou uma na altura de sua delicadeza.

 

      No mais, meu caro Senhor Freitas, creia-me um seu amigo muito grato e admirador.  Lima Barreto”

                                  

               (TOMO I, pp. 237/239, vol. XVI, das “Obras Completas”) 

   

 

         Segundo seu biógrafo Francisco de Assis Barbosa, o artigo de Esmaragdo de Freitas apareceu na imprensa de Recife, onde residia. E a carta de Lima Barreto foi publicada, pela primeira vez, no N° 8 da Revista da Academia Piauiense de Letras, em dez de 1924, pp 80-81.  

 

          Lima Barreto faleceu em 1922, João Luís Ferreira em 1927, Félix Pacheco em 1934 e Esmaragdo de Freitas em 1946.

 

         E a obra de Lima Barreto continua atual e viva.