Leituras de 2024 - parte 1
Por Bráulio Tavares Em: 02/06/2024, às 21H40
[Bráulio Tavares]
Em geral faço no fim do ano estes pequenos balanços de minhas leituras, mas desta vez vou fazer diferente. Até porque, quando chega dezembro, tenho dificuldade para evocar detalhes de livros lidos nos primeiros meses... Enfim, vai ser desse jeito.
Esta autora japonesa, de quem já andei comentando outros livros, pratica aquele tipo de narrativa em que diferentes contos vão se sucedendo e volta e meia encontramos personagens e situações que reaparecem, ou são mencionados, dando-nos a revelação de que tudo aquilo está ligado, aquelas pessoas se conhecem, aquele fato extraordinário narrado num conto é mencionado em duas linhas por um personagem de outro... Romance ou histórias interligadas? Eu chamo isso às vezes “romance de contos”, e na verdade é uma estrutura narrativa antiquíssima, que tem sido remodelada em tempos recentes. As histórias de Ogawa envolvem um homem que é curador de um Museu da Tortura, uma mulher cujo marido cultiva plantas venenosas, um homem que vive com um tigre de Bengala, uma mulher que cultiva cenouras em forma de mão humana...
“Acordei esta manhã ouvindo uma velha canção dos Beatles” (Recife, Ed. Bagaço, 2016) de José Teles
Para quem não está ligando o nome à pessoa, José Teles é há décadas o crítico musical do Jornal do Commercio do Recife, além de autor de livros essenciais como Do Frevo ao Manguebeat, O Frevo rumo à Modernidade, O Malungo Chico e outros. Aqui, ele dá uma folga à música brasileira e mergulha na obra dos Beatles, uma obra cheia de frases mágicas, capazes de despertar centenas de associações memorialistas, afetivas, poéticas. São contos curtos, às vezes historinhas de amor, de choques do cotidiano, fatias da vida real. Aqui, as canções dos Beatles são (perdão pela metáfora tosca) a massa da pizza, e por cima dessa massa sólida e carregada de significado, Teles distribui seus pequenos encontros e desencontros de gente perdida que não se dá por achada e continua procurando. Cada conto tem o título de uma canção, mas muitas outras estão distribuídas e polvilhadas ao longo dos textos, fazendo um contraponto curioso com o que acontece e com o que os personagens pensam, decerto porque nós, que vivemos num mundo onde música é sinônimo de vida, estamos sempre escutando um radinho que toca em algum recanto do cérebro. O livro de Teles comprova uma tese de meu amigo Rômulo Azevedo: existe um Sonoplasta do Mundo, que está sempre vigiando nossa vida e fazendo com que algum radinho-de-pilha de bodega ou altofalante de praça toque a música certa no momento certo. E é apenas uma canção do Norte.
“A devoração da sutileza” de Juliana Berlim (São Paulo, Patuá, 2023)
Esta é uma coletânea de contos – e de mini-contos, um gênero que eu pratico de vez em quando, e que tem suas próprias espertezas (e armadilhas). O miniconto se assemelha mais à foto ou ao cartum, porque é o flash de um instante, seja real ou rememorado, como vemos em “A mão incendiada”, “Princeps”, “O deus e o gafanhoto”. Os contos propriamente narrativos mostram com segurança, sem recorrer a enredos mais complexos, episódios que ganham em desenvolvimento, como “Risoto” (um passeio pela memória enquanto a narradora está ao fogão), “Orlando” (a viúva de um general cuidando obsessivamente da casa sob sua guarda), “Dádiva” (um pneu furado no meio da noite fazendo um casal fugir correndo na escuridão), “Espelho” (conto fantástico em que um homem acha um nariz na rua), “Ela/Elegbara” (uma travessia de deserto, na África, conduzida por uma mulher). A autora mostra que pode ousar enredos mais extensos e mais complexos, em que sua imaginação se solte ainda mais.
“Espectrais: contos sombrios na terra da luz” (Eusébio (CE), Ed. do Autor, 2023) de Stelio Torquato
Contos de assombração reunidos em “fix-up”, ou seja, há uma narrativa maior que reúne dentro de si as histórias individuais. No caso, o autor narra ter sido arrebatado pelo vento até uma região remota do interior do Ceará, onde vinte espectros lhe contaram casos acontecidos com eles, e que o autor passa a narrar. São histórias de maldições, botijas enterradas, violências castigadas pela fatalidade, contadas no tom de histórias sobrenaturais realmente acontecidas. Um aspecto interessante da narrativa oral (ou da narrativa escrita que busca reconstituir o universo da narrativa oral) é o fato de que contos isolados tendem a se perder, mas têm mais chance de se fixar quando são engastados numa estrutura maior, como acontece com As Mil e Uma Noites ou com o Decameron de Boccaccio. A “história de alma” ou “história de assombração” nordestina tem uma vitalidade imensa, embora gire também em torno de um certo número de formas básicas (como aliás acontece com a “ghost story” de língua inglesa). O livro de Stélio Torquato, ao criar uma “moldura” para seus contos, mesmo uma moldura claramente ficcional, adere a esse formato de origem oral, do “rosário de histórias”.
“A última noite de José Wilker” de André Balaio (Nova Lima, Caos & Letras, 2023)
Esta coletânea traz alguns contos curtos e a noveleta que dá título ao livro. André Balaio tem narrativa clara e precisa, que se lê fluindo como uma crônica, e tem o pulo-do-gato do contista, que volta e meia joga na página uma surpresa ou um choque descontínuo, fazendo o leitor exclamar consigo: “Comequié?...” e acelerar a leitura. A noveleta conta a história improvável e meio absurdista de um fã do ator José Wilker que fica terrivelmente impressionado com a morte dele (por enfarte, em casa, depois de jantar num restaurante) e resolve encená-la pessoalmente, reconstituí-la. Morador do Recife, o fã parte para o Rio de Janeiro com a intenção de reviver a última noite de Wilker – arranjar uma namorada (porque não tem, e ainda menos no Rio), ir ao mesmo restaurante, depois voltar para casa (ou para o hotel, no seu caso)... É um projeto absurdista que lembra as monomanias de alguns personagens de Georges Perec ou Paul Auster. Faz paralelo com outro conto do livro (“O Arremate”) em que um alfaiate idoso convence o cliente jovem de que foi o autor do gol do título do Botafogo num campeonato carioca, embora tudo pareça desmenti-lo. É a vida imaginária de cada um: uma conta que nunca fecha.
“Contos de Inverno”, de Karen Blixen
Eu já tinha este livro em inglês, resolvi reler agora na tradução elegante de Anna Olga de Barros Barreto (Ed. 34, 1993). Karen Blixen (“Isak Dinesen”, 1885-1962) é uma contadora de histórias à maneira clássica. Suas narrativas são sólidas, bem encadeadas, com começo-meio-e-fim, mas por cima dessa estrutura de pedra existe uma rica decoração de lambris e tapeçarias e forros e estuques e ornamentos. Ela passeia invisivelmente por entre os pensamentos dos personagens, o ambiente onde eles agem, lembranças históricas ou literárias com saborosas digressões ao passado – é uma literatura feita sem pressa, com carinho pelo detalhe, como aqueles quadros dos mestres holandeses.
Contos de Inverno é todo bom e reencontrei aqui, com prazer renovado, histórias como “O Grumete” (talvez o único texto fantástico do livro), “Campo de Dor” (o castigo cruel de um fidalgo sobre um servo e sua mãe idosa), “Os Invencíveis Senhores de Escravos” (uma estação de águas para gente rica, em que algumas pessoas fingem que são ricas e outras fingem que são pobres, para poderem se aproximar socialmente), “O Peixe” (uma história medieval sobre destino e fatalidade, a partir de um anel encontrado no ventre de um peixe), “A Criança Sonhadora” (um casal sem filhos resolve adotar um menino que julga lembrar-se de ter sido filho deles)... Todos os contos são bons.
“Sobre o Amor e Outras Traições” de Carmen Moreno (São Paulo, Patuá, 2021)
Conheço a poesia de Carmen Moreno desde que aportei no Rio há algumas décadas, e participamos de muitos recitais e agitos. Este livro é uma coletânea, dividido em vários capítulos temáticos (“O Fim”, “Mudança de Pele”, “Incêndios”, etc.), em que a poesia é emotiva e confessional, mas mantida sob controle com uma notável firmeza, e a expressão, ao invés de se curvar à emoção inicial, usa-a como matéria para atingir outro plano de intensidade. “Ouvindo Nana e Nina – Nenhum amor me deixou. / Moradores de mim, / estes mortos me abrigam / no sótão do eterno. / A cada blue tinto de vinho / dançam boleros nas taças da noite, / e salvam do chão, solidários, / as ébrias sílabas dos meus versos. / Nenhum amor me deixou, não há solidão. / Esta dor não é minha... é da canção.”
Os poemas refletem sobre amor, desamor, família, e refletem o período sombrio da quarentena e suas perdas, no capítulo “Mudança de Pele”: “Ninguém sabe do último abraço / ou a última chance de abraçar, / dizer, desdizer, serenar a língua / desalinhada. / O toque último dos dedos, / no apartar das mãos, / a sílaba final da última palavra, / no átimo do último olhar, / antes de o rosto virar, e o corpo, / por último, dobrar a esquina.” Uma poesia cada vez mais amadurecida e burilada.
“The Wrench” (1978) de Primo Levi (Londres, Michael Joseph, 1987, trad. William Weaver)
Este livro é também aquilo que chamamos às vezes de fix-up. Uma tradução possível seria “arrumadinho”, se este já não fosse o nome de um delicioso prato da culinária nordestina – várias coisas diferentes arrumadas juntinhas, mas separadas, numa mesma travessa ou prato comprido. Em literatura, um fix-up é um conjunto de histórias completas e curtas “amarradas” por um conceito, uma narrativa mais ampla que as coloca arrumadinhas no mesmo contexto.
Primo Levi sugere aqui a convivência temporária entre o Narrador (um técnico em química que está a serviço numa obra de grandes proporções) e Faussone, que é um “rigger”, operário especializado na montagem de grandes estruturas. O livro é traduzido no Brasil como A Chave-Estrela, o título do original italiano (“La chiave a stella”). Faussone é um sujeito prático, pão-pão-queijo-queijo, conhecedor do ofício, um resolvedor de problemas. São cerca de quinze histórias em que Faussone relata ao Narrador algum projeto em que trabalhou e que por algum motivo deu problema. Desde problemas pequenos (um macaco que se infiltra no canteiro de obras e tenta “ajudar”) até uma ponte que não resiste a uma enxurrada e vem abaixo de maneira hollywoodiana. O interessante no modo de narrar de Levi é que há um diálogo permanente entre Faussone e o Narrador, e um subtexto que percorre o livro inteiro é “a arte e a ciência de contar histórias”, porque o Narrador comenta o tempo inteiro os modos e os recursos de narração escolhidos por Faussone, um homem inteligente, de leituras medianas, mas sem o menor traço de academicismo ou intelectualismo. Acho que poucos livros me comunicaram, tanto quanto este, a idéia de que o trabalho de engenharia pode ser curioso e emocionante.