Kafka na cabeça

[Carlos de Sousa]

Quando eu estava fazendo o exame de admissão para o ginásio (lembram disso veióbas?) em Macau, um velho amigo me viu com um exemplar de O Pequeno Príncipe nas mãos e disse: “lê isso não, cara, melhor é ler Kafka”. E me emprestou uma edição vagabunda de A Metamorfose. Foi como cair em um abismo, mergulhar numa vertigem que nunca mais me deixou sair de lá. De lá para cá tenho colecionado boas e más edições do grande escritor tcheco. Li quase tudo do cara e agora estou relendo nessas boas edições que estão saindo com traduções de primeira qualidade, como as de Modesto Carone. Quando estava estudando em São Paulo, o professor Ismail Xavier mandou a gente ler O Processo e depois exibiu a versão cinematográfica de Orson Welles. Já conhecia alguns contos, mas preciso reler, pois esqueci quase tudo. Depois li O Castelo, na praia de Zumbi e estou lendo Amérika, um livro inacabado, repleto de intervenções de Max Brody, o amigo de Kafka. Tenho uma certa ambiguidade de sentimentos com relação a esse sujeito. Primeiro de agradecimento por ter salvo os livros de Kafka da fogueira, mas também de antipatia, porque fiquei sabendo através de um livro de Milan Kundera, chamado Testamentos Traídos, que Kafka queria que ele queimasse apenas suas cartas e diários, deixando seus livros a salvo. Ele publicou tudo e agora todo mundo sabe dos problemas de Kafka com o pai. Muita gente o agradece por isso, pois Carta ao Pai é um tremendo de um livro. Mas eu fico pensando se alguém fizesse isso com o diário de Alex, meu filho. Ter minhas ruindades reveladas… Sei não. Bem, o fato é que ninguém escreve como Kafka. Ele escrevia estripando pelo avesso, o corpo e a alma. Tudo, qualquer assunto corriqueiro, vira pesadelo em Kafka. Quer um exemplo? Em Amérika ele narra a estadia do herói num dormitório de empregados de um hotel em que ninguém consegue dormir. Acho que isso basta. Italo Calvino viu leveza no texto de Kafka. Eu só vejo peso. Pois bem, depois de tudo já li um bocado de coisa sobre ele e leio qualquer novidade que caia em minhas mãos. É um personagem fascinante que carrego numa camiseta que uma pessoa trouxe de Praga para mim. Depois tem mais.

Carlos de Sousa é jornalista e escritor.