(Miguel Carqueija)

O "amigo imaginário" está presente em muitos filmes e contos. Vamos conhecer o amigo imaginário da Jéssica.

JÉSSICA E SEU TIGRE


    O Veloso teve a sua atenção desviada do multi-Cosmonet pelos gritos alegres das crianças no jardim.
    - A turma está barulhenta hoje, Amy... - disse ele, desviando os olhos do diagrama dos anticlinais, sinclinais e monoclinais.
    - É sim! - Amy abriu a janela e chamou pela filha. - Jéssica! Jéssica!
    A menina, de sete anos, veio correndo, afastando-se um pouco de quatro companheiros de folguedo.
    - Que é, mamãe?
    - De que é que vocês estão brincando? Que barulheira!
    - Ah, mãe! Estamos brincando de pegar ladrão mesmo, e quem vigia o ladrão é o meu tigre!
    - Seu o que?
    - O meu tigre. O Storm. Ah, eu não te apresentei ainda. Ele está lá, perto do Ary. Está vendo ele? É enorme e cheio de listras!
    - É mesmo! Que tigrão, hein? - sorriu Amy, entrando no espírito da brincadeira. - Mas ele é manso?
    - É mansinho, mãe. Ele só pega se for gente ruim
    - É bom que assim seja. Bem, divirta-se com os seus amiguinhos.
    - Está bem! Vou lá!
    Amy voltou-se para o marido.
    - Viu só, Carlo? A Jéssica agora tem um tigre de estimação! E o nome dele é Storm...
    Carlo Veloso também achou graça. Nas cúpulas terramorfizadas da Lua não existiam animais selvagens. Custaria muito a sua manutenção. Quase nem existiam animais domésticos, por causa dos pesados impostos sobre a sua posse. Já era difícil a manutenção de seres humanos no satélite.
    - E bom que ela tenha imaginação...  criatividade...
    - E que tenha muitos amiguinhos para brincar...
    - É. E você vê que ela gosta mesmo dos documentários sobre a natureza. Imagine, um tigre...
    - Bom, eu vou trabalhar um pouco na minha sinfonia virtual. A propósito, falei a você da excursão?
    - Excursão?
    - Sim, na reserva. A escola vai levar as crianças lá no sábado...
    - Que ótimo, amor. Ótimo mesmo.
    Veloso falava por falar. No fundo queria mesmo era continuar no seu estudo da morfologia terrestre, muito mais emocionante que a lunar por ser a Terra um planeta vivo. Mas a referencia à reserva mantida pela Fundação Disney na Lua mexeu com alguma coisa em sua memória. De repente, enquanto manipulava o ratinho, lembrou-se do que se tratava: uma semana atrás fora encontrado o cadáver de uma jovem de quinze anos, dentro de uma das grutas da reserva. Uma vítima de violência sexual.
    "Ora, ela estava sozinha e a polícia já deve ter prendido o tarado."
    Ele nunca fôra muito de acompanhar a seqüência dos assuntos dos noticiários. Que fim levou isto ou aquilo? Ele não sabia.


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    Mais tarde, arrependeu-se por não haver falado dos seus ligeiros temores à Amy, já que não queria preocupá-la.
    Os dias que se passaram foram dias tigrentos, aborrecidos. Jéssica insistiu em levar o tigre para a cama, e ficava empurrando aquela massa invisível com impaciência.
    - Poxa, Storm! Você quase não cabe na minha cama! Dá um tempo, chega pra lá!
    - Minha filha - disse o Carlo - Por que você não manda esse diacho de tigre dormir no quintal?
    - Naquela friagem? Que maldade, papai! Arranje então um almofadão e ele dorme no tapete! Eu queria que ele dormisse aqui comigo na cama, mas, pombas, ele é muito grande!
    - Jéssica, faça as suas orações e vá dormir logo, que a gente acorda cedo! - Amy já estava meio agastada com aquela história de tigre.
    - Mas o almofadão? Basta isso, mamãe!
    - Esta bem, eu vou pegar - disse Carlo.
    Depois de instalado o felino, Carlo e Amy finalmente conseguiram ajeitar a menina em seu leito, despediram-se dela e saíram. Ao encostarem a porta ainda escutaram:
    - Abençoe a mamãe, abençoe o papai e abençoe o Storm. Amém.
    - Querido - observou a Amy - não seria melhor se ela tivesse um bichinho de estimação de verdade?
    - Com todos esses impostos? Só se me promoverem. Deixa ficar assim: um tigre invisível sai de graça.

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    Como uma laranja desbastada em vários segmentos concêntricos, num desbastamento irregular; em parte conservava-se a crosta terrestre; parte mostrava a capa intermediária, abaixo do manto, e o desbastamento final deixava ver, como uma fatia de queijo de Minas, o núcleo, que teria, somente ele, 1700 trilhões de toneladas, para 2600 trilhões de toneladas da capa intermédia. Pelo menos, esses números apareciam no monitor tele-holográfico.
    - Carlo! Carlo! Depressa!
    - Não me interrompa agora! Não vê que eu estou formando o esquema geológico básico da Terra, e que...
    Ela premiu o botão de desligamento drástico.
    - O que é isso, Amy? Isso pode escangalhar...
    - Homem, esqueça a sua mania de diagramas da Terra, a nossa filhinha está em perigo!
    - O que quer dizer com isso? Ela não está na excursão?
    - O Saraiva acabou de ligar, ela se perdeu do grupo e tem um anormal à solta por lá!
    - Como é que é?
    - Você sabia que houve um crime sexual na reserva?
    - Hein? Eu sabia, mas...
    - E porque não me falou, infeliz? Eu jamais teria deixado a Jéssica ir...
    - Mas não é possível! O pessoal do colégio tem que garantir a segurança...
    - Você vai lá comigo agora mesmo! Ela é nossa filha e de mais ninguém! Nós é que temos que protegê-la! E ai de você se acontecer alguma coisa a ela!
    Carlo finalmente reagiu. Não costumava acreditar no pior, mas não podia dar parte de desleixado em relação à própria filha. Colocou a sua jaqueta de magiplast, pegou sua penetrina e correu para a garagem, seguido por Amy, que se munira de outra penetrina e de um cassetete elétrico. Entraram no aerofuso e deixaram a propriedade. Seguiram pelas frias e geométricas ruas lunares. Carlo deixou a direção com a esposa e buscou contato com a equipe de excursão. Depois de algumas tentativas conseguiu falar com o Professor Paixão:
    - Alô, Professor Paixão! É o Carlo, o pai da Jéssica! O que está acontecendo?
    O tom de voz do Paixão revelou angústia, de modo que Carlo não se tranqüilizou nem um pouco:
    - Senhor Veloso, eu lamento. Aconteceu quando explorávamos a Caverna das Sombras...
    - O que? Não foi onde uma garota foi morta?
    - Foi, mas nós temos uma polícia agindo...
    - Ora, pelas estrelas! Isso foi imprudência, leviandade!
    - E sua também, Carlo! - intrometeu-se Amy. - Você estava sabendo desses detalhes! Seu monstro insensível! Você só quer saber desses hologramas estúpidos! Se a minha filhinha não voltar com vida e inteira, eu juro que peço o divórcio!
    _ Querida, por favor!
    - Querida é a sua avó! Eu quero minha filha de volta!
    E nessa base transcorreu o resto do trajeto...


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    Carlo finalmente começou a se incomodar, em sua consciência intima, com o grau de alienação a que chegara. Quantas vezes dera atenção à filha nos últimos meses?
    Chegaram ao túnel de ligação, passaram as suas credenciais na fenda magnética abaixo da tela de controle e prosseguiram. Afinal, pensava Carlo, como é que um marginal poderia penetrar ali sem ser notado?
    Quando chegaram à Praça de Reunião, de onde se avistava uma cúpula de magiplast muito mais alta que a da cidade - pois aí, maritacas estridentes, andorinhas, fragatas e gaivotas voavam bem à vontade - viram duas monitoras com o grupo de crianças.
    - Venha - disse Amy, já fora do carro, puxando Carlo pela mão. - Vamos saber da nossa filha!
    Falaram primeiro com a Eulália, que veio ao seu encontro:
    - Oi, ainda bem que chegaram! Todo mundo está procurando a Jéssica!
    - Todo mundo? E como é que vocês estão aqui? - descontrolou-se Carlo.
    - Calma, homem - interveio Amy. - Alguém tinha que ficar com as outras crianças.
            - Pois é. – confirmou Eulália. - Mas o Sargento Peter já está no bosque, com uma equipe...
    - Tem cães policiais?
    - Não há cães na polícia lunar, senhora. Ainda não foram introduzidos, sai caro e não são bem adaptáveis às falhas da gravidade artificial...
    Carla olhou em volta. Avistou a cantina, os vestiários e outras instalações, e os caminhos que seguiam reserva adentro.
    - Onde é a caverna onde minha filha sumiu?
    - Temos esses mapas aqui, peguem, eu vou com vocês. Só um instante.
    A garota deu uma palavra com as assustadas crianças e com a outra monitora, e indicou um jipe lunar, de colchão de ar:
    - Vamos nesse aí. É melhor que o carro de vocês, para um lugar assim.
    O casal tomou lugar no banco de trás e Eulália pisou no acelerador. O jipe magnetosférico seguiu velozmente por escuras vielas de mata tropical, onde não faltavam micos-leões e outros macacos; o colchão de ar garantia que nenhuma das valiosas espécies morreria atropelada.
    - Essa reserva é enorme... - comentou Amy.- Como é que um criminoso pode entrar aqui, se há controle de quem entra?
    -Bem, para falar a verdade tem alguém que entrou normalmente, como um visitante comum, e não saiu até hoje. Deve ser louco o bastante, para querer passar o resto da vida aqui, servindo-se dos mantimentos e roupas de reserva que deixamos pelas cabanas de apoio, e atacando as garotas.
    -O que? - Carlo estava perplexo. - Por que isso não foi revelado na mídia?
    -Ora, para não criar pânico e não diminuir a freqüência de visitantes.
    Diante dos protestos ela acrescentou:
    - Eu sei, é estúpido e egoísta. Mas foi a ordem superior: o mínimo de detalhes à imprensa.
    - E sabem quem ele é? – indagou Amy.
    - Ouvi dizer que é um rapaz de vinte e poucos anos, filhinho de papai...
    - Ora, a família dele vai querer que fique perdido por aqui para sempre, sendo caçado?
    - Não sei. Talvez arranjem um meio de lhe dar fuga
    - Mas... – começou Carlo, timidamente.
    - Sabem como o dinheiro gera corrupção. Desculpem falar disso a vocês.
    - Isso é verdade - falou Amy. - A sociedade atual é permissiva e tolerante com o crime, inclusive os juízes... ou a começar por eles. Só o alienado aqui é que não sabe disso!
    - Amy, por favor!
    - E vocês não podem descobrir quem é? Afinal isso é uma colônia lunar! Não podem saber quem está faltando?
    Eulália diminuiu a velocidade: aproximavam-se da caverna onde Jéssica sumira.
    - Por incrível que pareça, meus amigos, não é tão fácil assim. Existe gente que consegue entrar aqui ilegalmente. Desde que os vôos de passageiros se tornaram mais comuns e menos controlados, esse problema existe. A população selenita vai se tornando incerta e incontrolável.
    - Isso é algo que não deveria acontecer... - observou Carlo. Ia dizer mais alguma coisa quando avistaram, perto de uns plátanos, um grupo de guardas florestais. Eulália tratou de estacionar.
    - Alguma notícia?
    - Por enquanto não. Mas há muita gente procurando - falou um dos rapazes.
    - Nós somos os pais dela - disse Carlo, ansioso. - Eu pago uma recompensa a quem achá-la!
    - Meu senhor, isso é desnecessário. Todos nós queremos salvar a menina.
    Amy já chorava.
    - Não vai haver tempo... não vai haver tempo...
    - Isso não resolve nada, senhora Amy. Vamos lá! – animou Eulália.
    Despediram-se e, mais umas curvas, chegaram à entrada das grutas.
    - E se ela estiver lá dentro ainda? - indagou Carlo.
    - Isso não seria possível. O boné dela foi encontrado perto, quem quer que seja pegou-a mais para a saída, se penetrasse mais na caverna esbarraria com o pessoal.
    Havia um casal de guardas na entrada. Conversaram rapidamente e a moça, Ester, mostrou - lhes um aparelho em forma de tabuleiro de xadrez:
    - O esquadrinhador termobiológico é bastante eficiente quando se trata de cavernas, podem crer. Se houvesse uma criatura humana por lá agora, ou duas, os sinais seriam facilmente identificáveis. Ate porque, não há morcegos nas cavernas do parque. Não importamos os morcegos da Terra, pois as pessoas não costumam gostar deles e podem transmitir hidrofobia.
    - Então, o que você quer dizer é que ela não está aí dentro, não é isso? – Carlo foi seco.
    - É claro, e é um bom sinal. Ao ar livre é mais fácil...
    - Vejam! Vejam! - exclamou Eulália excitadíssima, apontando.
    Acabada de sair da mata, vinha correndo uma garota. Uma criança, de calças compridas e pulôver vermelho, com um feio rasgão.
    -Jéssica! - gritaram pai e mãe, ao mesmo tempo.
    A menina se atirou chorando nos braços de Amy e, em seguida, nos de Carlo. As outras pessoas presentes também a festejaram.
    - Minha querida - disse Amy, entre lagrimas de emoção - O que houve com você? O que lhe fizeram?
    - Um homem muito malvado me pegou, mamãe, e me levou para a mata. Mas ele não fez nada comigo.
    - Não fez? Porque, se tiver feito...
    - Não, mãe. O Storm pegou ele!
    - Quem? - perguntou, perplexo, o guarda Antenógenes.
    - O meu tigre! - Jéssica estava sorridente. - Ele acabou com o sujeito! O Storm nunca deixaria que me machucassem!
    Amy e Carlo se entreolharam. Ester, hesitante em dar a noticia pelos comunicadores, olhou-os interrogativamente.
    Amy tomou a filha nos braços:
    - Esta bem, minha filha. Dê os meus parabéns ao Storm. Se não lhe fizeram nada, então iremos para casa.
    - Um momento! - disse Eulália, decidida - Jéssica, onde esta o cara que levou você?
    - Eu sei onde está o corpo dele. Mas não é uma coisa bonita de se ver.
    Carlo mostrou-se impaciente:
    - Jéssica, por favor. Controle a sua imaginação.
    - Mas está lá, papai! O Storm apareceu e matou ele! Está lá, perto de umas pedras!
    - Carlo, vamos deixar ela nos mostrar - disse Amy com firmeza.
    - Mas...
    - Está decidido. Querida, vá me apontando o caminho.
    - Esta bem, mamãe.
    Amy levou-a nos braços e Jéssica foi dando as indicações. Passaram por bambuzais, por manchas de lava primitiva em meio à vegetação transplantada, por espessos aglomerados de moitas e árvores, até chegarem a uma cachoeira.
    E ali, perto de algumas grandes rochas, estava o cadáver de um homem jovem e bem vestido... horrivelmente estraçalhado por garras e dentes.