HISTÓRIAS DE ÉVORA - Capítulo XXXVI
Por Elmar Carvalho Em: 12/01/2017, às 05H41
HISTÓRIAS DE ÉVORA
Este romance será publicado neste sítio internético de forma seriada (semanalmente), à medida que os capítulos forem sendo escritos.
Capítulo XXXVI
E assim se passaram os anos
Elmar Carvalho
Quando Marcos concluiu o curso ginasial, encontrou uma turma de ginasianos que se comprometeu a dar continuidade ao jornal mural O Arauto. Conseguiu ainda publicar o jornal mimeografado O Liberal até o final de seu curso de Direito. Já então Mário Cunha fora morar no Rio de Janeiro, onde seu talento artístico foi reconhecido, passando a trabalhar como capista e ilustrador de grande editora nacional, que publicava revistas e livros didáticos e literários. Fabrício, que já vinha auxiliando seu pai na administração de sua loja de eletrodomésticos, fora cursar Administração de Empresas na capital.
Em virtude de O Liberal ter uma linha editorial independente e criticar com contundência as três esferas de governo, terminou perdendo vários anunciantes, o que foi inviabilizando a publicação regular do jornal, que foi espaçando cada vez mais a sua periodicidade, até o seu extemporâneo último número, cujo editorial teve o título poético de O canto do cisne, em que anunciava melancolicamente a sua própria extinção. Nesse número, a exemplo do que fazia nos demais, denunciou várias mazelas e corrupções da política estadual, nacional e municipal, além da derrubada e descaracterização de vários prédios e logradouros do patrimônio arquitetônico e artístico municipal.
Com a decadência do extrativismo e da construção de estradas asfaltadas, interligando as cidades circunvizinhas, a navegação do Paraguaçu foi definhando, até quase extinguir-se de todo. Já não se viam as grandes chalanas, barcaças e alvarengas ancoradas no cais do Porto do Charque, cujo nome era devido às charqueadas que ali existiram num passado já distante. As duas maiores indústrias de óleo de babaçu e de cera de carnaúba – a Vegecera e a Teles Bacelar – entraram em processo falimentar.
Quando James Cavalcante Taylor, proprietário da primeira, parou suas máquinas e caldeiras, seu grupo empresarial já estava em grandes dificuldades financeiras; disso resultou ficar em atividade apenas a matriz da Casa Britânica, fixada em Évora, que ainda resistiu por alguns anos. Carlos Teles Bacelar, por sua vez, emborcou o facho de suas fábricas de cera e de óleo babaçu; passou a fabricar outros produtos e diversificou suas atividades.
Com a instalação de grandes lojas de departamento em Évora, com preços mais atraentes e sistema de crediário de prazo mais alongado, muitas lojas concorrentes locais, de nomes imponentes como Império dos Móveis, Ditador da Moda, Palácio de Variedades, fecharam as portas. Os chamados profetas do apocalipse anunciaram que a cidade entraria em total decadência, e passaram a chamá-la de “a cidade do já teve”, de “bela adormecida”, de “finada Princesa do Paraguaçu”, etc.
Contudo, o rebate das trombetas foi falso, e os profetas apocalípticos fracassaram em seus presságios. Tal como aconteceu com outras cidades de mesmo porte, Évora voltou a se desenvolver em outros setores, sobretudo no turismo, prestação de serviço e comércio. Assim, surgiram novos hotéis e pousadas; instalaram-se vários estabelecimentos de ensino, mormente de nível superior, inclusive com faculdades de medicina, odontologia, enfermagem, agronomia; fundaram-se mais clínicas e hospitais; grandes empresas atacadistas e de supermercados surgiram na cidade, atraindo consumidores e varejistas de todos os municípios da região. Eclodiram muitas empresas não pertencentes às famílias tradicionais da cidade. Évora se expandiu em novos e afastados bairros, inclusive com a construção de luxuosos condomínios fechados. Foi nesse embalo que, já formado, Fabrício conseguiu transformar a loja de seu pai numa grande rede estadual de lojas de departamento, o que demonstrou a sua inteligência, liderança e capacidade empresarial.
Em meados da década de 1980, Marcos associou-se a alguns amigos intelectuais e fundou a Academia Eborense de Letras. Na qualidade de seu idealizador, foi aclamado pelos seus confrades como seu primeiro presidente. Na solenidade de sua instalação, realizada no auditório da Câmara Municipal, no prédio onde funcionara o desativado Évora Clube, onde dançara tantas vezes, proferiu notável discurso, no qual denunciou que alguns prédios antigos e históricos da cidade já haviam sido derrubados ou descaracterizados, sobretudo por comerciantes gananciosos, ávidos apenas por lucro e mais lucro. Alertou que as velhas casas (os “planetas”) da Zona Planetária estavam com seu estado de conservação bastante comprometido, podendo ruir num “inverno” mais rigoroso.
Acrescentou que o poder público municipal deveria promover concurso no ramo da historiografia, para que algum pesquisador ou historiador ficasse estimulado a escrever a história de Évora. Falou da degradação ambiental da cidade, sugerindo que um parque florestal fosse criado, sobretudo para preservação das matas ciliares do Paraguaçu. Também apresentou a sugestão para que um parque de preservação ambiental fosse criado na região da Serra do Cachimbo, com a criação e instalação de piscinas, bicas, trilhas, teleférico e outros equipamentos, que, sem dúvida, fomentaria o turismo no município.
Por fim, defendeu a ideia de que o Cemitério da Igualdade, de nome tão justo quanto apropriado, já inativo há mais de duas décadas, fosse transformado num museu e memorial a céu aberto, com a preservação dos túmulos e a criação de alamedas, jardins, caramanchões e um espaço para meditações e palestras temáticas. Seu discurso, com as suas denúncias e sugestões, foi acolhido com longa e intensa salva de palma. O jornal A Batalha o publicou na íntegra e a rádio Princesa do Paraguaçu o divulgou em vários horários. Posteriormente, foi publicado em forma de folheto.
Após o seu discurso, houve um lauto coquetel. Quando Marcos se postou, sozinho, a uma das janelas ogivais, perto das quais dançara tantas vezes, quando o auditório era a pista de dança do saudoso Évora Clube, veio cumprimentá-lo uma moça loura, um tanto gorda, de olhos azuis, meio enevoados pelo que poderia ser o prenúncio de alguma doença ocular; apresentava sinais de espinhas, sardas e varíola no rosto. Elogiou-lhe o discurso e tentou entabular uma conversa. Olhava-o como se tentasse seduzi-lo. Não tendo gostado da conversa e não se sentindo nem um pouco atraído pela mulher, Marcos, conquanto a tenha tratado com cortesia, inventou uma desculpa qualquer e se dirigiu para a mesa onde estavam Fabrício e outros amigos.
Soube, então, que aquela mulher era uma neta de James Cavalcante Taylor, já falecido há alguns anos, despojado da fortuna que tivera outrora. Viera passar alguns dias em Évora, após longos anos de ausência, em visita a familiares. Marcos, consternado, teve a certeza de que por trás daquela ruína precoce se escondia a inefável e precária beleza daquela menina linda, mas tola e presunçosa, que tanto o encantara no início de sua adolescência, e que tanto o magoara com o seu estúpido desdém.
Tomou um longo gole de cerveja, porém a bebida lhe pareceu mais azeda que de costume, como se fora um cálice de amargura e de fel. Não teve nenhuma sensação de vitória, revanche ou vingança. Ao contrário, como lamentou esse reencontro e a beleza esvaída nas formas transitórias, imperfeitas.
Com o coração confrangido, lembrou-se destes versos de um jovem poeta amigo seu:
recordas a menina que te golpeou
com um não, apenas por capricho e maldade.
(...)
lamentas a namoradinha jovem e esbelta
que envelheceu e engordou.
debalde procuras a sua cintura
para ternamente lhe pousares as mãos.
antes não mais a tivesses revisto.