História de um esquecido

                                                                  Cunha e Silva Filho

        “Você, mano, deve esquecer, perdoar. Isso vale  muito e é demonstração de  desprendimento humano. Vá em frente. Siga a sua vida.”

Fiquei olhando para o semblante daquele jovem, magrinho, baixo (não baixote), moreno claro, cabelos curtos que  o deixava  bem  melhor e mais bonito, quando assim,  o  seu  semblante e o seu  nariz  bem feito  e retílinio  ficava mais visível, límpid,   e envolventae, com um charme    que encantava o mulherio ao deu redor.  Com auele caabelo vbem corado  e curto, qe lhe caiíam nas feições bem delineadas   realçando-lhe   o formato de rosto quase quadrado  e sem gorduras nas bochechas  (lembrando  o rosto  bonito de Alain Delon),   pele  fina  e limpa, sem uma espinha, olhos bonitos e profundos, um leve sorriso de tristeza, talvez. Já estava doente. Tinha ido com ele ao Posto de Saúde para lá receber uns medicamentos. O médico com quem conversei me  disse, em tom de  reprovação, que era muito errado da minha parte  alimentar qualquer preconceito sobre a doença, que era  curável. A única coisa que  eu poderia fazer seria ter os cuidados higiênicos necessários. Com a medicação tomada  segundo a  prescrição médica,  tudo correria normal.

Quando chegou do Norte. Do Do Amazonas e vinha cheio de esperança. Estava bem fisicamente. Charmoso. Até arranjara trabalho numa empresa do centro do Rio. Desejava fazer Economia. Já me tinha avisado há um mês que viria pro Rio tentar uma vida melhor e se formar. Estava bem, alegre e determinado a vencer. Encontrei-o casualmente na Rua São José, à altura do Edifício Garagem, o Menezes Cortes, para quem não se lembra.

Gostava de pintar quadros de pessoas ou paisagens. Até me presenteou com um quadro quando ainda estava no Rio. Também  fazia poesia,  mas sem grandes voos. Não era revolucionário nesses dois  campos  artísticos, mas tinha algum talento, sim. Muito conversador, sobre  qualquer assunto, tinha ideias próprias e polêmicas. Sexualmente, era uma pessoa livre  e sem preconceitos.

 Um dia, num sonho,  o vi sentado  numa rede, me pedindo que o abraçasse. No sonho,  não quis atendê-lo. Sentia que podia  me contaminar. Me  reprovava por isso. Que absurdo ter medo  de  me contaminar do próprio irmão!  Não  me via como um irmão  verdadeiro e solidário, que não  tivesse nojo ou receio  de  um contato  físico com o meu próprio sangue. Era  terrível pra mim  só imaginar  esse comportamento  pequeno e egoísta, inclusive  ignorante. Não é coisa que se faça a um  ser humano  muito menos ao mano Ecê, que,  antes de tudo,  precisava de meu apoio. Felizmente, aquilo foi apenas um sonho  muito tempo  depois de seu desaparecimento em terra estranha e abandonado pela família.

Aquela cena do filme  relatando a história do príncipe judeu Ben-Hur procurando  pela mãe e irmã, no Vale dos Leprosos, me vinha sempre à mente e se misturava  ao meu remorso. Ben-Hur não teve nojo nem medo de  contágio. Abraçou as duas e foi abençoado por Deus com o milagre da cura  Por que eu  não fiz o mesmo? Por que  o rejeitei com   hipócrita discrição? Tal atitude minha não me  livra de uma possível condenação segundo   princípios cristãos. Hei de  carregar  essa  mancha interior para sempre, já que é tarde demais pra  me redimir. Ainda mais porque me desfiz de  uma pintura  emoldurada  que me dera de coração aberto e franco. Ele mesmo era a franqueza em pessoa.. Que  insensatez a minha! Até que ponto  me chegava  a estupidez?

De certa forma,   creio que ele teve culpa de seu sofrimento . Por que havia de se meter com   aquela gente estranha, dissoluta,  trazendo nas veias  o terrível vírus? Uma vez,  indo visitá-lo,  comprovei o que pensava de suas companhias  e do lugar em que estava  morando. Lá vi tudo.  Não havia dúvida de que tudo vinha à tona sobre o seu estado presente de  saúde abalada que resultou na tragédia e no seu  longo  e solitário sofrimento. Morreu sozinho e fora enterrado  praticamente como um indigente  no cemitério de uma grande  capital. Não havia nenhum familiar na ocasião.  Nenhum membro da família, eu inclusive. Ninguém dos membros da família   foi  procurá-lo ainda que fosse pra  lhe dar uma última palavra de  alento  e pedir-lhe perdão – por que não?  Hoje, jaz numa cova rasa, no esquecimento dos mortos e dos humilhados.

Me lembro daquela vez, à noite, em  que nós dois ficamos duas ou três horas juntos, sentados, conversando  alegremente, tomando  um refrigerantes debaixo de frondosas árvores daquela velha  praça de nossa  cidade. Era  em dias de festejos da Igreja. Ele estava   feliz, com sonhos  pra realizar. Tinha uma grande mágoa da mãe, com quem nunca se dera bem.

Ainda me lembro  do dia em que entrara no meu apartamento de subúrbio e lá encontrei uma telegrama me avisando que viria pro Rio . Esperava  contar comigo. Não viria pra minha casa. Ficaria uns dias na casa de uma nossa velha ti, que morava no subúrbio da Central do Brasil. Só depois,  apareceu  em minha casa. Estava feliz e  animado. Venceria  na cidade grande  se não fossem aquelas coisas em  que se viu enredado  quanto à saúde e ao seu comportamento  sexualmente livre. Os  artistas, enfim, são assim mesmo. Entram na senda dos perigos da vida e delas saem chamuscados. O resultado é um  destino anunciado, previsível, premonitório. Acordei daquele  sonho na madrugada e lhe   rezei pela alma, pedindo-lhe  meu perdão pelo meu medo e pela minha covardia. Requiescat  in pace.