há fotografias como punhais
Rogel Samuel
Para ela fotografias há que são punhais, poemas tamém, os poemas todos já foram escritos, reescritos, ela só faz este pedaço do oficio, o oficio das trevas, das argilas, dos pedaços de argila, impressos na chuvas, nos ventos, nas folhas noviças, o pai, a mãe ja partiram, e se foram numa voragem de passado remoto, a moça feia de varíola nunca amada que na taberna de Vladivostoque se ofereceu a Joseph Kessel, como pouca gente sabe, daquela guerra, deste verso, quase desconhecida guerra, mas ela lá esteve, e trouxe o verso, e por isso os outros versos todos já foram escritos, são chagas, são punhais crescendo bem como fogo, porque tudo é um problema insolúvel...
há fotografias como punhais. e poemas também.
todos os poemas que escreverei já foram escritos
dou-me apenas ao ofício das trevas
de os revelar em pedaços de argila
neles todos estão impressos a chuva e o vento
e as folhas noviças dos séculos e
meu pai e minha mãe que já partiram
esvoaçando num passado remoto
e também a rapariga feia e bela desfigurada pela varíola
que nunca fora amada porque não era bela
e que numa noite na taberna de Vladivostoque
se ofereceu derradeiramente a Joseph Kessel
talvez pouca gente saiba deste verso
que nunca terá sido dito deste modo
e foi acontecido durante a guerra sino-japonesa
quase ninguém esteve lá para o ver
mas eu estive. trouxe -o comigo.
é exactamente por esta razão que os meus poemas
já foram todos escritos.
são como chagas alastrando e crescendo em searas de fogo
estando entre a terra e as estrelas.
sei apesar de tudo porque li Juan Gelman
que cada lágrima é um problema insolúvel
MARIA AZENHA
A chuva nos espelhos