George Orwell e as motivações da sua escrita
Por Herasmo Braga Em: 20/06/2025, às 23H22

George Orwell e as motivações da sua escrita
Herasmo Braga
Professor e Ensaísta (UESPI/PPGEL-UFPI)
Não são todos os autores relevantes que adquirem a marca de terem suas obras como leituras indispensáveis. Elas acabam ganhando essa projeção não por serem clássicas ou por exercerem forte influência na confecção de outros textos. A sua proficuidade reside na constante atualização das suas observações. Uma dessas obras pode-se evidenciar: 1984 e a Revolução dos bichos de George Orwell.
A atenção não indispensável em praticamente todos que almejam ou desenvolvem algum nível de racionalidade crítica. Apesar de muito se confundir que uma pessoa só será considerada crítica quando o seu pensamento estiver em convergência com quem o avalia, o zelo argumentativo vindo da reflexão não emparedada por determinadas possibilidades únicas para se pensar tem se tornado cada vez mais raro diante desse imaginário romântico, que se supõe pelo precário repertório, adquirido como algo suficiente para poder lançar-se em análises, sejam elas sociais, políticas, econômicas ou até mesmo nas subjetividades humanas. Destarte, nesse mundo pueril de luta do bem contra o mal, onde todos se consideram sempre do lado do bem, há textos que despertam nos sujeitos um certo mal-estar e permitem por, no mínimo algum instante, ater-se o quanto se é iludido acerca das complexidades do mundo e que de repente se imagina tenuamente simples. Assim, 1984 e A revolução dos bichos, pelas suas narrativas alegóricas e figurativas, incomodam os ingênuos de plantão ao perceberem que qualquer forma acrítica de autoritarismo, de controle da minoria, de defesa dos oprimidos, da igualdade a todo e qualquer preço, da liberdade condicionada, são aspectos constantes e atuantes no cenário social, político, econômico e no campo das ideias.
Diante das motivações da sua empreitada de realizações por meio da escrita, George Orwell em Por que escrevo destaca quatro motivos para se escrever em prosa, pelo menos. Nas palavras do autor:
- Puro egoísmo. O desejo de ser visto como inteligente, de ser tema de conversas alheias, de ser lembrado.
- Entusiasmo estético. A percepção da beleza no mundo externo, ou, por outro lado, nas palavras e em sua disposição correta [...]. O desejo de compartilhar uma experiência que se considera valiosa e que não se deveria perder.
- Impulso histórico. O desejo de ver as coisas como são, de descobrir os fatos tal como ocorreram e preservá-los para a posteridade.
- Propósito político. O desejo de impelir o mundo em certa direção, de alterar a concepção dos outros quanto ao tipo de sociedade que deveriam almejar.
Interessante que, nessas quatro macro caracterizações, não há o equívoco do purismo, como se fazer parte de uma invalidasse os outros motivos, adverte ele: “Nenhum livro é genuinamente isento de viés político. A opinião de que a arte não deveria ter nada a ver com política é, em si mesma, uma atitude política”. No caso de Orwell, reconhece-se em qual dessas motivações a sua escrita esteve mais direcionada. Todavia, há uma diferença fundamental para quem se depara diante de tal motivação e produz textos ficcionais: a qualidade da prosa não pode vir em segundo plano, deve estar associada no mesmo grau de relevância do conteúdo político manifestado por meio dos recursos figurativos e reflexivos da linguagem. Ele mesmo reforça essa questão quando diz: “Eu realmente me empenhei muito para contar toda a verdade sem violar meus instintos literários”. Ele mesmo comprova esse ponto e enfatiza: “A Revolução dos bichos foi o primeiro livro no qual tentei, com plena ciência do que estava fazendo, fundir os propósitos políticos e os artísticos em uma unidade”. Dessarte, a qualidade literária deve estar em consonância com a reflexão política. Ater-se ao político e deixar de lado o cuidado qualificativo do texto seria realizar panfletarismo transvertido de literatura. No mesmo passo, frisar apenas o lado da qualidade da prosa com ausência de problematizações políticas é realizar construções desprovidas de realidades ou mesmo tons interpretativos críticos relevantes.
Entre os pontos motivadores da sua escrita, destaca-se um que deve independer dos motivos, dos temas, das formas e hoje compromete em demasia as produções contemporâneas, reside na presença do aqui chamado “eu vaidoso”, idealizado no texto. Como bem atesta George Orwell: “Escrever um livro é uma luta horrível e exaustiva, como o longo acesso de uma enfermidade dolorosa [...], não se pode escrever nada legível a não ser que se lute constantemente para apagar a nossa própria personalidade”.
Ou seja, desfazer-se na presença desnecessária desse Eu que apenas compromete o texto por meio das idealizações de si e nada se acrescenta com opinativos ou achismos baseados em idiossincrasias formuladoras de juízos de valor. A dimensionalidade da Literatura e da sua escrita exige muito mais do que a mera exaltação de egos.