Fortuna crítica
Em: 13/04/2007, às 16H15
Meu caro Nogueira Tapety:
Acredito ter sido dolorosíssimo o sacrifício que o acaso te
proporcionou, dando-te por companheiro obrigatório o crédito fatigante e
impertinente de um bom católico apostólico romano, catecista por índole,
vicentino por catarse. Mas acredito ser mais doloroso, mais cruel e mais
pungente ainda, ter que viver, tu, o sonhador, o artista faminto de glória, o
espírito nobre, de muita inteligência, acorrentado à ignorância calma,
concentrada e casmurra do povo que te cerca e que não te compreende e
que zomba imbecilmente do teu talento...
As esperanças que acalentavas, os sonhos que pontilhavam de
luminosidades estranhas à noite cor-de-rosa da tua existência, se foram
para bem longe, para o além, desaparecendo afugentados pelo sol
inclemente e abrasador da vida real.
Bem, muito bem dizia o Sobreira, o amigo original que tão bem
compreende a vida e que ainda melhor a vive, quando se penitenciava a
ouvir o áureo cortejo dos teus planos a Patrocínio, que não passarias
jamais de ser o que realmente hoje me af irmas que és: Promotor Público e
Chefe Político da Comarca de Oeiras.
A vida, meu amigo, é o círculo dos contrastes. É sempre a
mesma desilusão, o mesmo mal, a mesma brutalidade esmagadora de
sempre.
O que és hoje? És o homem completamente diferente daquilo
que sonhavas ser...
Nós vivemos de queda em queda, de desilusão em desilusão. O
homem é filho da dor. O gozo é efêmero como a glória, “a glór ia é
efêmera como o fumo”. Shopenhawer disse que “a vida é sofrimento e a
vida humana é a mais dolorosa forma de vida”. Guerra Junqueiro ampliou
com outras palavras a tese Shopenhaweana: - “A vida é o mal. A
expressão última da vida terrestre é a vida humana e a dos homens numa
batalha inexorável de apetites, num tumulto desordenado de egoísmo, que
se entrechocam, rasgam, dilaceram.” No mundo, de real, só existe a dor,
pensava Voltaire, acrescentando “que as moscas nasceram para serem
comidas pelas aranhas e os homens para serem devorados pelas afeições.”
Corneille, no seu maravilhoso poema Le Cid, escreveu:
“Jamais nous ne goûtons de parfaite alégresse:
Nos plus heureux succès sont mêlés de tristesse.”
A vida é isto, meu amigo. É a opressão, é a ignorância. É a
podridão de Locusta ou o misticismo celeste de Santa Teresa ou a doutrina
de Vanderbilt custando aldeolas de miseráveis.
O seu espírito torturado sempre pela sede luminosa da arte, do
Belo, do Grande, da Glória, pulsa agora acolcheteado no âmbito estreito
de um estabelecimento comercial e nos corredores pardacentos da casa do
Conselho...
Fatalidade!... Deve ser muito interessante a tua pose
aristocrática, o teu método de ianque presidindo uma sessão do Conselho
Municipal.
“Considera isto, escreves com sinceridade, pasma e vê neste
espelho fiel o fim que aguarda a todo indivíduo que se bestializa em
Direito, como dizia o Fialho. Espera-te a sorte e, como eu, prevejo que
falharás na vida bacharelática; trata, pois, de estudar escrituração
mercantil, pois como bacharel nada farás, uma vez que as condições de
êxito são três: pai alcaide, orelhas grandes e pose, sobretudo pose, meu
Lucídio. Livros não os abr irei mais. Para ser comerciante, promotor e
presidente do Conselho Municipal de todas as Oeiras do mundo, já tenho
ilustração pra burro. Agora é tratar de sufocar estas pedantescas
necessidades do espírito; fazer politiquice na aldeia, comprar cera,
borracha, couros, vender mercadorias com lucro de 50%, enganar o
próximo, arranjar mulher, criar banhas, ganhar dinheiro e teremos feito a
vida.”
É uma grande verdade o que escreveste. O futuro que nos
aguarda, a todos nós, é o mesmo.
Ao reler a tua carta dogmática, sincera, brilhante, entrecortada
de laivos de saudade e de tristeza, vi passar pelos meus olhos, em revoada,
num rufar de asas ligeiras, todo o nosso passado acadêmico: bando frugal
de sonhos multicores, aventuras difíceis, um olhar, uma lágrima, uma flor,
um beijo, um verso escrito às carreiras, uma semana ou mais de
quebradeira, um rendez-vous, tudo isso, meu amigo, que constitui a vida
de um estudante nortista...
E a nossa vida republicana?
Lembras-te, quando à rua do Aragão, eu, tu e Raul Machado, o
amigo sincero, o companheiro dedicado, o poeta delic ioso, o artista fino,
consagrado em todo o país como espírito mais bem organizado da nova
geração de intelectuais brasileiros, passávamos horas e horas, após o
jantar, procurando esquecer as gargalhadas altitonantes do Pedro Sá e do
Demócrito, o piauilismo exagerado do Raimundo Cunha, o excelente
companheiro que estimo, a matemática de Holmes, a carranca do Felipe, e
as graças do Custódio compondo versos àquela menina cor de jambo que
nos espiava de longe, cautelosamente, da sua casinha muito meiga e muito
branca, ao lado daquele posto policial que tanto nos amedrontava? E a rua
Augusta com o Corintho, Edison Sobreira, Públio, Cristino e Rangel?
Lembras-te do dia em que o nosso cozinheiro voltou ao serviço,
e, como as despesas do dia estivessem feitas, eu, tu, e o Edison, por
princípio econômico, fomos bater à cozinha, cada qual trabalhando melhor
a arte culinár ia?
Lembras-te, bem sei.
Hoje, meu amigo, vives uma vida burguesa, fútil e ao mesmo
tempo espalhafatosa de moço aldeão. Podes dizer, como o imortal Sousa
Bandeira, escrevendo ao seu companheiro de Academia, o nosso patrício
João Alfredo de Freitas: “Eu tendo perdido as ilusões pelo atr ito da falada
vida real de que tanto chanceava quando prediziam os conselheiros
oficiosos”, eu, tornando bem em burguês, homem prático, olho possuído
de uma saudade infinita, para um passado que lá se foi.
Adeus!...
Por hoje basta.
Domingo voltarei a abraçar-te; não fazendo reminiscências, que
não as sei fazer, mas falando da nossa saudade que é toda a nossa vida...
Lucídio Freitas
Diário do Piauí - nº 214, Teresina , 29 de setembro de 1912.
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CELSO PINHEIRO FILHO
NOGUEIRA TAPETY
1990
NOGUEIRA TAPETY
(no cinqüentenário de sua morte)
CELSO Pinheiro FILHO
Oeiras, em janeiro de 1912, no que tinha de mais representativo, preparava-se para
a grande festa em homenagem ao recém-nomeado Promotor Público da Comarca, que se
formara, em Recife, no ano anterior.
Era gente nascida ali mesmo naquela terra agreste, na fazenda Canela, a 30 de
abril de 1890, o Dr. Benedito Francisco NOGUEIRA TAPETY, f ilho de Antonio
Francisco Nogueira Tapety e Antônia Leite Nogueira.
Sempre recebia a cidade, com alegria, os seus grandes filhos, seus filhos ilustres.
Mas não como acontecimento excepcional. A razão é que, grande tem sido o número
desses filhos merecedores de homenagens, tais como: Pedro Francisco da COSTA
ALVARENGA (1823-1883); Casimiro José de MORAES SARMENTO (1813-1860);
FRANCISCO José FURTADO (1818-1870); DEOLINDO Mendes da Silva MOURA
(1835-1872); LICURGO José Henrique de PAIVA (1844-1912); CLODOALDO
FREITAS (1855-1924; BENJAMIM de Moura BATISTA (1880-1940); PEDRO
Alcântara de Sousa BRITO (1882-1955), e muitos outros.
O jovem fiscal da lei passou um ano e meio naquela vida calma, despreocupada,
sem entrar em choque com nenhuma das correntes políticas locais, e sem se intrometer
nas brigas da família. Tivera o cuidado de arquivar, no que fez bem, para nunca mais
rever, as regras de direito e as citações em latim, que aprendera. Falava a mesma
linguagem que o dono do botequim e o vaqueiro. Seus conhecimentos de direito ficaram
arquivados, nos cartórios, limitados aos pronunciamentos por dever de ofício. Somente
rebuscava um pouco a linguagem, para dizer galanteios às moças. Era tamanha a
simpatia dele irradiada, que ninguém se preocupava em notar que era mulato. Ele
mesmo parecia não notá-lo, pois que, nesse sentido, era completamente descomplexado.
TERESINA
Naquela paz bucólica, foi buscá-lo o Governador Miguel Rosa, rancoroso e
negação em relações públicas, homem de grande e inegável valor, mas de poucos
amigos e muitos inimigos. Naturalmente, auto-sabedor dessa negatividade de sua
personalidade, encontrou no jovem Tapety um complemento atenuante, um homem feliz
consigo mesmo, e amigo de todos.
Nomeou-se Delegado-Geral da Capital (18-11-1913), servindo junto ao Gabinete.
Tapety recebeu o cargo de Lucídio Freitas, o qual exonerara-se por desacordo com o
Governador que ele e seu ilustre pai, Clodoaldo Freitas, haviam ajudado a guindar ao
poder.
Foi a oportunidade de Tapety reencontrar-se com os doutores boêmios, e os
poetas, simplesmente boêmios, da sua geração. Quase todos haviam estudado, como
seus colegas, os preparatórios, em Teresina. Faltava Da Costa e Silva, que o Bras il
arrebatara ao Piauí, assim como Alcides Freitas, poeta-nato, falecido seis meses antes, e
que resumira os seis anos de aprendizagem da medicina, em um único e belo poema: A
Lágrima, sua tese de doutorado.
De dia, podia-se encontrar o jovem Delegado-Geral no “boteco” do Horácio
Giordini, um italiano aparecido aqui, não se sabe de onde, no qual reunia-se a turma.
Desta, era infalíveis: Zito Batista e Lucídio Freitas, que logo depois viajariam para o
Rio, Jônatas Batista, Celso Pinheiro, Baurélio Mangabeira, assim como o pai-de-santo
de inúmeras gerações – Higino Cunha.
À noite, depois de verem as moças, na retreta da Praça Rio Branco, iam para o
café do velho Quelé, no qual Edson Cunha atesta que se comia “pastéis com cerveja
quente”. Daí partiam para o Alto de São Benedito, onde discursavam ao pé do Cruzeiro.
Depois ... sendo noite de lua, serenatas até o alvorecer.
Cada um deles já havia, antes, percorrido a redação dos jornais, para corrigir a
prova do último soneto.
Era esta inocente vida, a chamada vida boêmia da Teresina de então.
Estas rodadas caracterizavam-se, também, pelas confidências. Não precisavam de
confessionário, porque se confessavam livremente, uns aos outros. Numa dessas
confissões, feita a Celso Pinheiro, dizia Tapety a respeito de sua cor em tom de blague:
“Mestiço, eu preciso aperfeiçoar em mim o sangue da raça inferior. Sei que as morenas
são mais amorosas e sensuais, como esse formoso sol dos trópicos a lhes cantar nas
veias. Mas, um colo de açucenas, uns olhos cheios de céu, uns cabelos de ouro, mais
depressa me comovem, por que me fazem sonhar com uma prole encantadora, onde
antevejo, mulatinhos engraçados, cor de café com leite”.
Assim como o toureiro só se consagra na arena, o sonho máximo daqueles
sonhadores, era fazer uma conferência literária no Teatro 4 de setembro, num domingo,
pela manhã, depois da missa, com assistência de todas as moças encantadoras da terra,
dos intelectuais em peso, e também das autoridades, sendo quase constante a presença
do próprio Governador, com a família.
Zito Batista fizera a sua, tendo O Lenço como tema, Alcides Freitas fez uma sobre
A Tesoura, e depois outra sobre Álvares de Azevedo. Falou a respeito desse poeta
paulista, como ninguém antes nem depois dele soube falar. Tapety, em 1911, preparou,
com esmero, a sua, sob o tema A Luz.
Com a fonte de luz mais excitante aos sentidos é a solar, fez longo estudo acerca
do Sol, demonstrando assombroso conhecimento científico, para a época e para um
bacharel, com relação ao astro.
Explicou também que o Astro-Rei foi a primeira manifestação da divindade, que o
homem adorou. Que todas as religiões, de uma forma ou de outra, pouco mais foram do
que manifestações da heliolatr ia.
Finalmente, como não podia deixar de ser, passou para o terreno da poesia. A
eterna fascinação dos poetas pela luz, quer solar, quer a de uns lindos olhos femininos,
quer a do luar, quer a luz das estrelas. Mesmo nesse terreno, andou muito pouco pela
seara alheia, preferindo ficar com a prata da casa. Citou Da Costa e Silva, seu colega de
preparatórios, em Teresina, e no 1º na de Faculdade, em Recife, sem esquecer de prestar
ao grande gênio a maior e menos convencional homenagem; aliás, a mais sincera, em
poucas palavras, feita por um poeta piauiense. É que, inexplicavelmente, os intelectuais
da terra fizeram sempre uma certa e surda resistência a Da Costa. Citou Zito Batista que,
presente, estava embevecido com o poeta. Citou Alcides Freitas, há pouco falecido,
rendendo-lhe o preito de sua homenagem.
Não foi só a sugestividade do tema, nem a perfeita forma literária, que
ocasionaram o formidável sucesso,representado pelo estrondor das palmas da
assistência, e depois pelos comentários dos jornais. Foi também a f igura simpática do
ardor, recém-saído da adolescência; o sorriso feliz de quem está em paz consigo mesmo.
Depois desta conferência, fez outra – O Caminho da Felicidade – que,
infelizmente perdeu-se, por não ter sido publicada em folheto, com a anterior.
Estavam reconhecidas, por moços e velhos, suas qualidade de intelectual autêntico
e magnífico poeta. Mas não surgira assim, tão de repente. Ainda estudante, em Recife,
colaborou no Diário de Pernambuco, e no final do curso fez um soneto sobre cada um
dos colegas concludentes. Chegando a Teresina, foi colaborador assíduo de O Piauí.
Também mandava trabalho seus para O Diário, de Belém (Pará).
Foi, então, nomeado Promotor da Capital (04-11-1914), e logo depois (04-03-
1915) Professor de Filosofia, no Liceu.
A esse tempo, começaram a aparecer os primeiros sintomas do mal que o
vitimaria. Uma tossesinha seca que não cedia com os xaropes. Febre pela manhã.
Inapetência. Confirmada a presença do mal, foi como se um raio se desferisse sobre o
poeta. Imensa consternação entre os amigos e admiradores, porque sabiam ter o destino
assinado uma sentença irrevogável de morte.
Miguel Rosa, o Governador, apesar do gênio irascível, brigão, malcriado, tinha
pelo poeta a afeição de um pai. Estando de viagem of icial para Parnaíba, em agosto de
1915, fez questão de levá-lo, mesmo doente, em sua comitiva. Visava como o fez dali
mandá-lo, rumo à Ilha da Madeira, a Pérola do Atlântico, a esperança dos
desesperançados pela ciência humana.
Consciente visceralmente de que tinha pouco tempo para realizar-se, o poeta
explodiu em versos como um vulcão, borbolhou em cascata, como a semente de planta
do deserto, que espera cinco ou mais anos por uma única chuva. Mas que, quando esta
chega, nasce rápido, viça vertiginosamente, para logo florar enquanto resta alguma
umidade, desfazendo-se novamente em semente para a longa espera.
MADEIRA
O navio foi se aproximando de Funchal, capital da I lha da Madeira. Da amurada,
o poeta olhava apreens ivamente para aquela esperança. Uma crise de tosse. Superada,
tinha à vista uma des lumbrante paisagem de clima temperado, tão luxuriante e diferente
daquela formada de arbustos contorcidos e árvores desfolhadas, de sua terra. Mulheres
com roupas típicas, invadiram o navio, oferecendo aos passageiros os universalmente
famosos bordados da Ilha.
À vista do paraíso que estava descortinando, os versos desabrocharam,
esplendorosamente:
“Madeira! Foi assim que te sonhei:
Uma linda montanha,
Toucada de jardins, magnífica, risonha,
E és como imaginei . . .
Ergue-te sob um céu sempre claro e brilhante,
Onde o sol que flutua,
Sendo prodigamente fecundante,
Não tem aquela luz torrefacente, crua
Que faz de minha terra outro inferno de Dante!”.
Aquele cenário de contos de fadas, que os arqueólogos sustentam ser o que restou
da legendária Atlântida, encheu-o de esperanças. Loucas esperanças. Não eram
remédios, pois que então ainda a ciência não os conhecia, para o mal do poeta. Era
aquela natureza, aquele clima, aquele cenário mesmo, que iriam curá-lo.
Como Nietzche, poderia dizer que nada mais lhe restava de tudo quanto teve,
exceto a esperança. A louca esperança de sentir alijada a morte, que tão perversamente o
vinha acompanhando. A louca esperança de não ser mais sua presença evitada pelos
conhecidos, pelos amigos, pelos parentes e, acima de tudo, pelas belas mulheres.
Iniciou a nova vida com tanta fé em si mesmo e no futuro, que esse entusiasmo
contagiou aos bondosos portugueses. Fez amizade com os intelectuais da terra, e
começou a colaborar, com seus versos, para o Diário da Madeira.
Estes versos exprimiam o entusiasmo para com as belezas da Ilha, e a certeza de
que este pedaço miraculoso da terra portuguesa, o havia recebido em seu seio, e o
tomado sob seus cuidados, para curá-lo do mal que os homens não sabiam curar.
Daí surgiu o fabuloso poema Janua Coeli, depois publicado na Revista da
Academia Piauiense, sob o título de Ode à Madeira. Dedicou o poema a D. Laura Vera,
dona do hotel em que se hospedara, que o tratava com o desvelo e cuidados só
dispensados a um filho querido e doente.
Eis como ele manifestava seus agradecimentos antecipados à terra que, tinha
certeza, iria curá-lo:
“E apesar de tudo isto, és meiga e generosa
Possuis uma bondade e doçura sem termo
E entregas o regaço, carinhosa,
A toda alma infeliz e a todo corpo enfermo...
És a mais doce e altruísta irmã de caridade
Que neste mundo egoísta há de existir:
Nada pedes, e dás aos que te vêm pedir...
Saúde, robustez, felicidade...
Ao vencido, ao enfermo, ao fatigado,
Parece que convidas num sorriso:
“Repousa no meu seio perfumado,
– Eu sou o Paraíso”.
Madeira, és o consolo dos aflitos,
Dos tristes a alegria, amparo aos desgraçados,
E refúgio seguro dos proscritos
Que foram pela ciência humana abandonados...
............................................
O velho médico que o atendia, para evitar uma desilusão, acostumado como
estava a lidar com doentes daquela natureza, que do Bras il, de Portugal e da África
buscavam Madeira como última esperança, avisou ao poeta que a cura viria devagar.
Resultar ia da reação do organismo ao novo e miraculoso ambiente. Que esta reação,
provocaria, paulatinamente, a expulsão dos venenosos bacilos da peste branca.
E o poeta, na inocência das crianças, que é a mesma dos poetas, a cada novo
acesso de tosse, sentia que os bacilos o iam abandonando. A cada nova golfada de
sangue, via no vermelho deste, as cores do diabo, que o iam deixando.
Assim pensando, assim sentindo, o gênio, incubado pelo sofrimento, teve que
desabrochar em forma de versos, e cantava com mais força e sentimento ainda, o
ambiente responsável pelo seu renascimento.
NATUREZA
Este sol, esta paz, esta serra, este ar puro,
Vêm de novo acordar meu amor pela Vida;
Schopenhauer reentrega o lugar de Epicuro
E a alma vibra feliz e rejuvenescida.
Já não sinto do tédio os tentáculos de aço
Qual povo a triturar-me a origem do prazer.
E hoje, em tudo o que penso, e em tudo quanto faço,
Br ilha, canta a alegria heróica de viver.
Despertam em meu ser energias estranhas
Que vêm dar a meu sonho asas fenomenais,
E me tornam capaz de remover montanhas
Para a consecução dos meus nobres ideais.
O espírito outra vez abre as asas liberto
Para audaz empreender a escalada da altura,
E, mais perto do sol, das estrelas mais perto,
Cantar da vida eterna, a eterna formosura.
No homem de espírito há por força qualquer cousa
Que o faz de alguma sorte igual às águas reais,
Pois se o espírito de um só na altura repousa,
À asa do outro, somente a altura satisfaz.
É por isso que aqui, nesta escarpa de serra,
Na vizinhança azul e sã do éter profundo,
Passo o tempo melhor que já vivi na terra,
Inteiramente estranho às misérias do mundo.
Supondo-se restabelecido, não mais como o simples bacharel doente que ali
chegara, Tapety, na febre de seus delírios de realizações futuras, já não se conformava
mais voltar a ser simples mortal.
Rumou para o Olimpus imaginár io, em busca da companhia dos deuses. Porque
nem estes conseguem viver a sós. Situam-se, sobranceiramente, inatingíveis acima dos
humanos.
Resolveu, então, em um de seus mais fabulosos poemas, escrever o capítulo que
Nietzche não quis ou não soube escrever, do que se lhe ditou Zaratustra. Desse poema,
destacamos o trecho abaixo:
ELOGIO DO BELO
............................................
Eu sou o portador das verdades futuras,
E o que ensino há de ser somente percebido
Por quem for superior e tiver pressentido
A nuvem que ainda vai se adensar nas alturas.
............................................
Pode o mundo chamar-me ou gênio ou vilionár io,
Eu lhe desprezo altivo o louvor e a censura;
O mundo chamou louco o Mártir do Calvário
E a alma branca de Buda ele acusou de impura.
Rodeado de silênc io, em paz com a Natureza,
Entronizado aqui, nesta grimpa de serra,
Desprezo como um Deus as misérias da terra,
Vivendo para o ideal da Suprema Beleza.
............................................
Mas, se a Vida é a Beleza, a razão do Universo,
E o Universo a Beleza extrema da Harmonia,
“Que fique – Único Deus – no altar-mór do meu verso,
O Belo – O Grande Sol, que a minha arte alumia.
Ele é o princípio e o fim de tudo, a Idéia–Máter,
Da qual as outras são corolários e ornatos:
O Bem é, simplesmente, a Beleza dos Atos,
E a Verdade, a Beleza e a glória do caráter.
............................................
Quem o ama em qualquer aspecto da existência
Na cor, no som, na luz, uma ave ou uma rosa,
No íris, no mar, no sol, numa mulher formosa,
Pratica a Religião do Deus por excelência.
Homem! Queres um Deus! Crê no Belo e terá
O Deus que aperfeiçoa a purifica e ilustra,
Por ele é que glorioso um dia atingirás
O grau de perfeição que atingiu ZARATUSTRA!”
Mas o tempo ia passando. O primeiro choque provocado pela mudança de
ambiente e de clima, que ocasionou aumento de apetite, ia paulatinamente desfazendose.
Pelo modo do médico lhe recomendar paciência, o poeta começou a desconfiar de
seu próprio otimismo.
Compreendeu, por fim, que, apesar de sua crença na possibilidade de cura, a
doença o vencera. Analisou, então, serena e friamente, o sacrifício que seu pai fizera
para educá-lo, formá-lo, e mais estas enormes despesas com sua permanência no
estrangeiro. Se nada mais lhe restava além da espera da morte, preferiu que esta se desse
na fazenda Canela que o viu nascer, onde passara os melhores e mais despreocupados
dias de sua infância.
Embarcando de retorno, da amurada do navio contemplou pela última vez o
fabuloso cenário da Ilha. Tudo sem ódio e sem rancor, como quem vê pela última vez
um amor que tanto se quis. Nenhum poema de despedida a Madeira, deixou. Na sua
conformada decepção, só não rasgou os poemas de otimismo que ali fizera, porque já os
havia mandado aos amigos, e estes os publicaram nos jornais e revistas da sua terra. No
entanto, não sabia que estes poemas ficariam como parte integrante da literatura
madeirense.
Desembarcando em Parnaíba, subiu o rio direto a Teresina. Aqui demorou poucos
dias; o suficiente para que seus amigos e o pessoal da turma, batessem longos papos
com ele. Mas não quis sair à rua para rever a cidade, onde tanto brilhara com suas
conferências, assistidas por todas as moças bonitas da terra.
De Teresina, seguiu diretor para Canela, que sabia ser seu último e def initivo
destino.
CANELA
Era julho de 1916. A natureza não tinha ainda se descoberto, por completo, de sua
roupagem de inverno.
Quando a razão se escurece, devido à incerteza da cura de um mal, a única
alternativa que resta ao homem, é se abrigar na fé. Foi o que fez Tapety. Mas a sua fé era
na própria Natureza.
Ao alvorecer do primeiro dia na fazenda, com todo o espetáculo grandioso que o
ambiente oferecida, lembrou-se de Guerra Junqueiro quando disse que em tudo que
alvoresce, há um sorriso de esperança.
Renascia-lhe a esperança. Penitenciou-se de haver escrito, em Madeira, que o
verão de sua terra era um outro inferno de Dante. E quem lhe podia af irmar que aquele
cenário agreste que o viu surgir para a vida, não tivesse força também, para fazê-lo
renascer em saúde. Assim, depois de tomar o copo de leite mugido, com conhaque, fez
esta jóia:
VERÃO
O verão nesta terra é apoteose de ouro
No ar, nos montes, no céu, na terra difundida,
Feericamente acesa, arde a essência do louro,
Numa fulguração de flama enfurecida.
Do reino vegetal o pródigo tesouro
Br ilha febril ao sol numa messe florida:
Heliantos e paus-d’arcos, onde a abelha e o besouro
Se vão nutrir de luz em pólen convertida...
A cigarra sibila o seu chiar penetrante,
E ao longe ouve-se a voz da araponga vibrante,
Que estridula e retine a estridente canção.
E seja de manhã, meio-dia ou de tarde,
O sol dominador a cuja ação tudo arde,
Ilumina, flameja: é o Senhor do Verão!
O organismo jovem, despreocupado e bem alimentado, reagia novamente. Dava
longos passeios a cavalo. Aprendeu a chamar pelo nome todas as reses do curral.
À noite, conversava com os vaqueiros da fazenda e outros da redondeza, que
vinham ver o “doutor”. Era uma conversa dessas que levam o espírito às regiões do
Nirvana. Conversa de vaqueiro, e só: “Compadre, vancê viu aquele garrote da vaca
morgada, é de sua férrea? Tá se indireitando! Aquilo vai dar um touro e tanto”. O poeta
concordava e dizia que há tempos não touro e tanto”. O poeta concordava e dizia que há
tempos não via, era aquela novilha da era de 14, filha daquela vaca de leite gostoso. O
vaqueiro informava que ela estava pastando nas Cabeceiras, e qualquer dia destes
levar ia o Doutor até lá, para vê-la.
Esse tipo de conversa, sem pé nem cabeça, distrai tanto que, muitas vezes, eram
surpreendidos pelo cantar do galo. É como a pesca de linha: chega-se, de madrugada,
num bom pesqueiro, joga a linha, recolhe a linha e, sem sentir fome nem sede, de
repente, vê-se que já está escurecendo.
Com a chegada das primeiras águas, em dezembro, os garrotes escramuçando no
terreiro. Relâmpagos rasgando o céu. Trovões ensurdecendo tudo. E a alma do poeta
desandou a cantar:
MANHÃ DE INVERNO
Que esplendia manhã tranqüilamente muda!
Rebrilha o ouro do sol no azul do céu turquesa
E a grama a rebentar em pelúcia trasmuda
O que, há pouco, no campo, era rude aspereza...
Tudo o que é vegetal em verde se aveluda;
Há como um despertar em toda a natureza,
E a floresta, no outono, esfolhada, desnuda,
De repente, retoma a perdida beleza.
Cada raio de sol, é um turbilhão de vida
Ao contato do qual estremece a semente,
Na umidade da gleba escura, adormecida...
Campânulas em flor abrem profusamente,
E a terra canta, assim, fecunda e florida
Hinos de aroma à luz e à vida onipotente!
A essa altura, doença e organismo estavam procurando acertar uma acomodação
que permitisse viverem juntos dezenas de anos, mesmo cinqüenta, como aconteceu ao
recém-falecido poeta Manoel Bandeira.
Pensou, então, em constituir família, ali mesmo em Canela. Fácil lhe seria
construir uma casinha confortável e modesta, no campo.
Fácil também lhe seria arranjar uma cabocla brejeira, descendente dos gueguês
preados pelo Coronel João do Rego. Mas esta solução não satisfazia ao ideal artístico do
poeta. Queria uma mulher culta, com quem pudesse trocar idéias. Queria, também, que
fosse branca, para clarear os mulatinhos que viessem a nascer:
SONHO PANTEÍSTA
Uma escarpa de serra eminente à floresta:
Em cinco o abismo azul do céu, embaixo o abismo
Da mata tropical com pássaros em festa,
Celebrando canções ao Deus do Panteísmo...
Uma casa de campo aprazível, modesta,
E o silenciO criador de Carlyle – o mutismo,
Pairando em derredor para eu dormir a seSta,
Quando o sol rebrilhar Da luz do paroxismo...
Uma mulher virtuosa, inteligente e linda,
Que compreenda e que adore a minha alma de artista
E um nobre e grande amor como eu não tive ainda...
Viver qual Zaraturtra, em paz com a Natureza,
Como deve viver um poeta panteísta
Cantando a Vida, o Amor, A Verdade e a Beleza...
Acontece que o sentimento de piedade humana, quando se manifestA, o faz, às
vezes, com violência tamanha que supera a todos os obstáculos. Até o instinto de
conservação e o receio de contágio, podem ser superados. E não é raro que o Amor
venha cavalgando a Piedade.
Foi o que aconteceu. Apareceu a mulher sonhada, disposta a superar todas as
barreiras. Infelizmente, o nome da misteriosa dama foi levado com o poeta para o
túmulo. Caso contrário, ficaria entre os nomes dos grandes e dramáticos amores da
história.
Encontrando seu sonho, começou o poeta a viver um grande drama de
consciência: seria justo, seria humano, seria honesto aceitar tão grande sacrifício? ...
Entendeu que não, optando pela dilacerante renúncia.
TÂNTALO
Eu não te devo amar. Entretanto impossível
É me esquecer de ti, mesmo um curto momento.
Quero-te, porém não posso ficar impassível
Ao fulgor deste olhar da cor do firmamento...
Perderam-me essa graça e esse encanto indizível,
Acordando-me n’alma esse atroz sentimento,
Que de Tântalo impôs-me o suplício terrível
Apurado no negro crisol do tormento.
Mais que a tudo no mundo, eu te quero, confesso,
Porém, para este amor nada almejo nem peço,
Que te possa custar o menor sacrifício...
Chego mesmo a supor que igualmente me queres,
Mas ... não devo exigir da melhor das mulheres
Que siga um condenado em seu triste suplício!...
No verão de 1917, quando chegaram os ventos de agosto, os micróbios, em
violenta ofensiva, começaram a ganhar a batalha da morte. Os acessos de tosse voltavam
com freqüência. A carne ia desaparecendo do corpo sofrido, para expor a bela ossatura
de atleta.
Centro do fim próximo, já resignado ante o inevitável, foi o poeta assaltado pela
última e atroz dúvida: - Seu nome desaparecia também? Não mais seria lembrado pelas
gerações futuras? – Tapety manifesta esse temor em resposta a uma carta de Costa Rêgo.
Teve a mesma dúvida que também assaltou Alcides Freitas, e que a manifestou, em carta
a seu irmão Lucídio Freitas. Disse Tapety:
Tão habituado estava eu a pensar que o meu humilde nome já fizera o seu termo
no mundo das letras, mesmo provincianas, onde apareceu, teve um momento de brilho
pálido e efêmero, para logo depois desaparecer, como os efêmeros fogos–fátuos.
Um dia foi chamado para atender um viajante que acabava de chegar. Era o poetaboêmio
Baurélio Mangabeira, que se balançara tantas léguas em lombo de burro, para
conversar com o poeta-mártir, no alpendere de Canela.
Não teve limites a alegria de Tapety. Baurélio deu- lhe notícias da turma: Celso,
Cristino, Higino, Lucídio (que retornara), dos sucessos de da Costa e Silva, no âmbito
nacional, de tudo, enfim. Deu- lhe também notícia da fundação da Academia, que estava
sendo cogitada, e que seu nome figurava entre os imortais que a iriam compor.
Também recitou para o poeta, o grande e belo poema-épico piauiense,o Touro
Fusco, de José Coriolano de Sousa Lima, que Tapety não conhecia. Mas ficou
encantado, pois o cenário do Touro Fusco era aquele mesmo que se descortinava dali do
terreiro da fazenda.
Bebendo a boa cana que o poeta providenc iara para hóspede, Baurélio passou três
dias com Tapety, contando novidades, recitando versos, mas sentindo que o f im de seu
amigo estava se aproximando.
Finalmente, chegou o amargo fim, em 18 de janeiro de 1918. Rodeado pelos
familiares, apagou-se a chama da vida que animara o corpo do poeta. Era pleno inverno.
Terminado o enterro, e por recomendação médica, começou o auto-de-fé de
purificação da casa pelo fogo. Rede, roupas, calçados e papéis do poeta, foram
colocados no páteo da fazenda, e queimado tudo. A casa destelhada por algum tempo,
para que o sol a purificasse também. Nestes papéis queimados, estava tudo o que de
mais belo o poeta produzira, nas horas de sofrimento e solidão.
Aquela cena de labaredas queimando e consumindo os poemas do poeta foi,
talvez, seu mais belo poema em louvor à Natureza. Foi, por antecipação, amostra do
poema final que, segundo as escrituras, consumirá toda a vida da face da terra: – O
Poema do Fogo!
Não houve ignorância nem maldade de seus familiares, como hoje se possa
imaginar. Ao tempo, dadas as facilidades de contágio da tuberculose, cada desgraçado
que morria dessa doença, tinha todos os seus pertences submetidos ao mesmo
tratamento, por ordem médica.
Eu mesmo assisti a um auto-de-fé dessa natureza, relativo aos objetos que
pertenciam a uma tia, linda e moça. A pobrezinha ficava o dia todo no fundo do quintal,
onde a empregada levava água e comida. De noite, quando ela ia para o quarto, dormir,
jogava-se cal viva no local da cadeira, no quintal. De dia, quando voltava para o quintal,
lavava-se o quarto com creolina. Procurei, às vezes, aproximar-me dela, para conversar e
minorar o seu isolamento. Mas a vigilânc ia sobre nós, as crianças, era permanente. Logo
alguém me chamava...
Morta, levaram sua mala para o quintal, e atearam fogo. Fiquei olhando arder,
cheio de desilusão, pois pensei tanto em ver o que havia ali dentro, além dos sonhos de
moça bonita e decepções de uma vida frustrada.
Não sei se Tapety chegou a saber de sua eleição para Academia, pois faleceu uma
semana antes da instalação da mesma.
Morto antes da posse, Celso Pinheiro, Antônio Chaves e Jônatas Batista,
propuseram que fosse considerado empossado post mortem. Logo a seguir, elegeram
Cristino Castelo Branco, para sua vaga. Por isso, apesar de ser o primeiro ocupante da
cadeira, o patrono da mesma, um jurista, não foi escolha sua, e sim de Cristino. Se sua
fosse a escolha, o patrono seria um poeta, com certeza.
Cristino, no discurso de posse, disse a respeito de Tapety: Grande talento que se
afirmou no alvorecer dos anos, alma estravasante de luz e coração cheio de bondade,
foi ele, talvez, o mestiço mais inteligente que já nasceu em terras piauiense. Cristino fez
este discurso com lágrima nos olhos. Era um dos maiores amigos do poeta. Tinham sido
colegas da Faculdade de Direito de Recife, e uma mútua simpatia sempre os uniu.
Lucídio Freitas, em História da Literatura Piauiense, chama-o de o panteísta
admirável. Mas esse panteísmo puro e simples, tendia a evoluir, como o de Da Costa e
Silva, Celso Pinheiro e do próprio Lucídio Freitas, se tivessa a vida dado tempo ao
poeta. É ele mesmo quem o confessa, na já citada carta a Costa Rego, em agosto de
1917, há apenas cinco meses de seu fim, portanto, como segue:
Para mim, o que é essencial no artista de qualquer natureza, é que saiba sentir
superiormente, exprimir com superioridade os seus sentimentos e, sobretudo, que seja
sincero. Pouco importa que, sendo poeta, cante a Vida ou o Amor, na Natureza ou a
Ciência, desde que possua esse dom magnético, que constitui o segredo do verdadeiro
artista: comunicar, integralmente aos outros as suas emoções.
Este panteísmo surgiu, entre nós, numa geração desprezada, de tipos esquisitos,
nos quais poucos faziam fé: Cristino Castelo Branco, quase anão; Alcides Freitas
também baixinho e desfigurado pela hidropsia; Zito Batista, feio de doer, como ele
mesmo reconhecia; Baurélio Mangabeira, tipo euclidiano de caboclo, que se acocorava,
sentado no calcanhar, mascando fumo e recitando; Tapety, mulato metido a gente; Celso
Pinheiro, alto, desengonçado, sempre mal vestido e desgrenhado. Só Lucídio Freitas,
com seu tipo apolíneo, com modos peculiares de tratar com as diversas categorias de
indivíduos, acabou tornando-se o líder inconteste de sua geração, das gerações passadas
e das gerações futuras.
Constitui surpresa a descoberta de que aquela troupe não era de circo, e sim uma
nova raça de gênios.
Eles encontraram o ambiente intelectual toldado, sob a batuta de Clodoaldo
Freitas e Higino Cunha, oferecendo como opções o clericalismo e anticlericalismo. Mas
a nova geração de titãs que não sofrera, como aqueles a inf luência direta de Tobias
Barreto, nem o impacto da luta entre Império e República, achou inócuas e secundárias
estas opções. E seguiu rumo próprio, cantando Deus através de sua criação – a Natureza
- e cantando a materialidade das cousas, através de sua realidade visível e palpável – a
Natureza!
Sendo uma posição com caminhos em todas as direções, cada um depois,
procurou seguir o seu caminho próprio, exceto Tapety e Alcides, porque a morte não lhe
deu tempo. Assim mesmo, Alcides, in extremis, lançou seu último apelo, não aos deuses
do Olimpo, mas a Senhora da Piedade.
Celso Pinheiro, em homenagem ao poeta morto prematuramente, expôs como o
via, no soneto que segue:
NOGUEIRA TAPETY
Caldeado, temperado,
à forja de ouro do tropicalismo,
Acendeste acendalhas de lir ismo
Nos campos da Beleza e do Pecado!...
Mariposa tenuíssima do Fado,
Ardeste à labareda do Civismo,
Na fogueira do velho socialismo,
Ardeste no fogo anímico e sagrado!...
Halos, nimbos, clarões e rosicleres
Puseram-te na fronte, misteriosas,
As sílfides das Rimas, as mulheres!...
Foste da luz no bárbaro conflito,
A música ancestral das nebulosas
No misterioso crânio do Infinito!...”
Baurélio Mangabeira também o chorou comovido e sentidamente pois que sempre
tivera uma admiração toda especial por Tapety. Transformou seus soluços em versos
intitulados À Memória de Nogueira Tapety, dos quais destaco o trecho abaixo:
[...]
Desde Canela, à margem azul do Mocha,
Ó pássaros daí, chorai por mim,
Já que não perto estou dos vossos ninhos,
Para juntar meu canto aos vossos cantos,
No sensível calor dos vossos lares,
Da vossa vida lírica sertânica,
Para choro sentir nas vossas almas,
Tão cândidas, tão puras, tão divinas.
[...]
Ai! Patativas de azuladas penas,
Cantai sentidas nênias nesses bosques
N’altas verdosas frondes da ingarana,
Em memória do jovem liretato,
Do famoso poeta,
Que escreveu “Janua Coeli”.
Neste ano do cinqüentenário de sua morte, entendi de prestar minha homenagem a
Tapety, este grande representante das letras piauiense, tão grande como os maiores que o
foram, que o são, e que o serão.
__________________________________
Esmaragdo de Freitas
Nogueira Tapety
Pertence ao nobre grupo do eleitos.
É sóbrio em tudo, mas correto em tudo,
E o nome dele é um desses nomes feitos
À custa de talentos e de estudo.
Tem publicado aqui contos perfeitos
E impecáveis na forma, sobretudo;
Mas, criticando, conquistou defeitos,
Pois, criticando, é franco e, às vezes, rudo...
Intransigente e tanto, como artista,
E faz questão cabal pela sintaxe,
Mostrando-se até nisto civilista...
Faz guerra à convenção, faz guerra à praxe
E, em questões de caráter, é purista,
Pois a ninguém se dobra, nem que rache!
(Nascido a 2 de julho de 1887, na cidade de Floriano, no Piauí, Esmaragdo de
Freitas e Sousa, apesar de cinco anos mais velho do que eu, foi meu
companheiro de turma na Faculdade de Direito do Recife, onde recebemos o
grau de bacharel a 11 de dezembro de 1911. Antes cursara o primeiro ano de
Medicina na Faculdade da Bahia, resolvendo, porém, abandonar os estudos
médicos e aderir ao bacharelismo, que lhe pareceu mais de acordo com as
tendências do seu espírito.
No ano da formatura, escreveu em versos, no “Jornal do Recife”, o perfil dos
companheiros, dado que ele era, desde aquele tempo, às lides literárias e ao
jornalismo, muito ligado então a Adalberto Marroquim, a Da Costa e Silva, a
Mário Rodrigues, a Antônio Lopes.
Escrevendo o perfil dos colegas, era natural que um destes escrevesse o dele.
Incumbiu-se disso Nogueira Tapety, uma das melhores inteligências da turma,
poeta inspirado, arrebatado à vida em plena mocidade – in Escritos de Vário
Assunto, Cristino Castelo Branco, Editora Pongentti, Rio de Janeiro, 1968).
APRESENTANDO “ARTE E TORMENTO”
José Expedito Rego
Não é preciso dizer da vaidade que sinto de ter sido escolhido para fazer a
apresentação, nesta opinião solene, do livro, finalmente editado, do que se
conseguiu salvar da obra literária desse grande oeirense, Benedito Francisco
Nogueira Tapety.
Devo louvar de início o patrocínio da família do poeta ilustre, dando
relevo ao trabalho do meu dileto afilhado Carlos Rubem, e a colaboração do
Instituto Histórico de Oeiras e da Academia Piauiense de Letras.
Não entrarei em detalhes biográficos do vate oeirense, de vez que, no
início do livro, há um relato sucinto mas completo do Professor Tito Filho, nesse
sentido, além das apreciações judiciosas de José Ribamar Matos e J. Miguel de
Matos. Falarei apenas de algumas recordações de minha infância ligadas à sua
pessoa. Desde que me entendi no mundo, ouvi, aqui em Oeiras, referências a
Nogueira Tapety, todas cheias de admiração pelo seu grande talento, sua
elegância, e de pesar por sua morte precoce. Os mais velhos apontavam-me a
casa grande do Canela e diziam: ali morou e morreu Nogueira Tapety. Uma tia
minha, já falecida, Francisca César Rego, mais conhecida por Siloca, foi
contemporânea do poeta. Era amiga íntima de Mar ia de Jesus, que todo mundo
chamava de Bembém, irmã do autor da “Ode à Madeira”. Ambas faziam parte
de uma turma de moças mais ou menos da mesma idade, iam juntas às festas e
aos raros bailes acontecidos naqueles tempos. Tia Siloca contou-me um segredo.
Lendo a apresentação do Professor Tito Filho vemos ali a citação de Cristino
Castelo Branco, segundo a qual a “maior aspiração de Nogueira Tapety seria
casar-se com uma moça bem alva, para ter filhos cor de café com leite”. Em
seu soneto “Tântalo”, Nogueira fala do “fulgor de um olhar da cor do
firmamento”. Pois bem , segundo minha tia, a musa de Nogueira Tapety era uma
linda moça da família Sá, loura e de olhos azuis. Eu perguntei se havia
correspondência nesse amor e a resposta foi afirmativa. Por que não se casaram?
– indaguei ainda. Por causa do preconceito! – foi a resposta. E no soneto “Ad
Eterno”deste livro está o verso: “Separando-nos há preconceitos infames”.
Outra recordação me vem de Antônio Meleta, um engraxate filósofo que
trabalhava no Bar Guarassu, ali na esquina da praça da matr iz, em frente ao
Museu Sacro. Nogueira Tapety voltara da Madeira muito satisfeito, julgando-se
curado. Estaria no patamar da igreja, conversando alegre com alguns amigos e,
para mostrar que se encontrava realmente bem disposto, dera um salto por sobre
uma das altas muretas de pedra, então existentes ali. Veio em seguida um
escarro hemoptóico.
Confesso que nada, praticamente, conhecia dos escritos de Benedito
Nogueira Tapety. Esta publicação foi providencial, trouxe a lume, para
conhecimento de todos, uma obra de grande valor literário que permaneceu
ignorada por tantos anos, um verdadeiro atentado às belas artes de nosso Estado
e do Brasil.
Consta o livro de uma parte em versos e outra em prosa. Depois de ler
cuidadosamente os poemas, procurei enquadrar o autor numa das correntes
poéticas ainda vigentes em seu tempo. Ele se declara panteísta e o Panteísmo era
um dos temas da escola parnasiana. A não ser, porém, pela busca de correção na
forma, não pode ser considerado, o nosso vate, um parnasiano. O Parnasianismo
é uma forma de Naturalismo, no campo da poesia. Nogueira não tem o rigor
objetivo de um Le Conte de Lis le, de um Teófilo Gautier ou de José Maria de
Herédia. Apenas no soneto “Manhã de Inverno” existe algo do paisagismo
desse poeta francês, nascido em Santiago de Cuba. Ele é, no fundo, um lírico
romântico. Aliás, líricos e românticos foram também os mais celebrados
parnasianos do Brasil, Alberto de Oliveira, Bilac, Raimundo Correia, Vicente de
Carvalho.
Historicamente, o Simbolismo ficou mais perto da época em que Nogueira
Tapety escreveu os seus versos. No soneto “O Mocha”, invejado por mim, dada
a beleza telúrica que eu não soube captar nem transmitir nos poemas que
também compus sobre o riacho querido, existe certa musicalidade que lembra o
Simbolismo. Ou desejar ia o poeta apenas imitar o doce cantar das águas
cristalinas, “espumando em cachões e cachoeiras, marulhoso a regar essas
paisagens raras”? O soneto “Maio” fala também de “vaporosas manhãs de
transparente claridade”. Mas não! Não era um s imbolista. Falta-lhe o
misticismo de Cruz e Sousa e de Alphonsus Guimarães. Não encontramos nele o
exagero de imagens e de metáforas, próprio dessa escola literár ia.
Prefiro colocar Nogueira Tapety entre os poetas chamados de transição,
aqueles que ocupam um período intermediário, entre o Parnasianismo e o
Simbolismo já ultrapassados e o Modernismo, iniciado em 1922. São poetas
como Olegário Mar iano, que de modo algum pertenceu ao Parnaso Brasileiro,
nem tão pouco era já modernista. Augusto dos Anjos foi outro poeta
personalíssimo, que não pode ser enquadrado, no meu fraco entender, em
qualquer escola. Alguns críticos o chamam de neo-parnasiano, outros de
simbolista. Poderia o excêntrico poeta paraibano ser considerado do Parnaso
pela correção da forma e pela linguagem científica. Nada tinha, porém, de
objetivo, pois até o título de seu único livro foi “EU”. Manoel Bandeira, antes
de aderir entusiasticamente ao Modernismo, em seu primeiro livro, publicado
em 1917, “A Cinza das Horas”, é um típico poeta de transição. Essa obra já se
liberta das escolas literárias passadas e mostra a tendência liberal do
modernismo que viria a ser. Foi mesmo chamado o João Batista do
Modernismo. Jorge de Lima, antes de escrever “Essa Negra Fulô” lançou, em
1914, livro de versos alexandrinos.
Nogueira Tapety não se enquadra, a meu ver, em nenhuma escola
literária. E é sem surpresa que vejo confirmado este meu julgamento ao ler a
carta a Costa Rego , em que Nogueira expressa o seu “desprezo pelas exigências
acadêmicas e formalísticas no tocante a escola poéticas...” Parece, todavia, que
sua maior admiração se volta para os autores portugueses, pois considera Guerra
Junqueiro “o maior poeta do mundo” e chama divino a Eça de Queiroz.
É certo que todos aqui presentes irão ler este livro precioso, mas desejo
destacar dois poemas nele contidos. “De Volta” é o primeiro, escrito certamente
após um de seus regressos à terra natal. Fala do aconchego da volta, da cidade
iluminada, dos lugares queridos despertando as saudades da infância, da alegria
de rever parentes e velhos amigos. O segundo é a “Ode à Madeira” Aqui é a
chegada à ilha de sonho e de esperança, que descreve em tons da mais pura
sensibilidade, como um noivo a ver pela pr imeira vez a noiva prometida. Esse
poema pode figurar em qualquer antologia de grandes poetas nacionais.
A conferência “A Luz”, vazada na mais pura linguagem, de grande beleza
e elegância de estilo, admira-nos pela vastidão de conhecimentos do autor. Vêse
que Nogueira Tapety, aos vinte anos de idade, estava a par dos mais
importantes avanços da ciência, não só teológicos e filosóficos, como no campo
da antropologia. Imagino a sorrir as gentis senhoritas e senhoras que lotavam o
teatro Quatro de Setembro, no dia 11 de fevereiro de 1911, a quem o poeta, de
início, faz uma saudação cheia de cortesias e rebuços, pedindo, ironicamente,
piedade para o conferencista; se tanto o aplaudiram no final, foi porque não
apreenderam em profundidade a tese defendida. O poeta demonstra, em sua
convicção de panteísta, que o cristianismo, à semelhança de todas as grandes
religiões antigas, está fundamentado num mito solar. Bela conferência, não resta
dúvida. Poderia ser repetida em nossos dias, sem mudar uma vírgula.
Quanto ao diário escrito em Madeira, são anotações despreocupadas,
tomadas talvez para transformá-las em livro que relatasse suas impressões de
viagem e de estada na ilha. Com humor crítico narra seu isolamento entre
pessoas estranhas e na maior parte indiferentes, fala de suas saudades de exilado,
do medo de morrer distante das pessoas queridas. Há um trecho do diário que
merece ser mencionado, aquele em que, durante uma viagem de trem, uma linda
inglesa filava nele os olhos insistentemente, como que admirada de seu tipo de
mulato, raro na região. Vê-se que ele não tinha o menor complexo de
inferior idade, por causa da cor. Ao contrário, possuía plena consciência de sua
inteligência superior e de seu talento. Isto fica patente no soneto “Anátema”, em
que se considera um novo Prometeu, e lamenta “como os grandes ser grande e
ficar pequenino”, terminando no terceto: “Trazer dentro do peito o coração
mais nobre,/ E o desprezo sofrer das almas pequeninas/ Na impotência fatal de
todo artista pobre../”. É o tormento dos grandes espíritos mergulhados no tédio
da mediocridade ambiental, sofrido até por Jesus Cristo que, segundo Plínio
Salgado, foi um momento assim que subiu a um monte, em companhia somente
de Pedro, Tiago e João, deixando lá em baixo a multidão ululante, para o refúgio
da Transfiguração.
Aqui está o livro, tardiamente lançado a público. Nossos parabéns ao
Instituo Histórico de Oeiras, à Academia Piauiense de Letras e à família do
grande homenageado. Antes tarde do que nunca!
Desnecessário dizer quanto lamentamos a morte precoce de Nogueira
Tapety. Se tal não tivesse acontecido, estaríamos festejando hoje uma obra
muito maior, em volume, certamente, porque em valor literár io, este pequeno
livro é suficiente para imortalizá-lo.
NOGUEIRA TAPETY
(1890 – 1918)
Consciente visceralmente de
que tinha pouco tempo para realizarse,
o poeta explodiu em versos como
um vulcão; borbulhou em cascata,
como a semente de planta no deserto,
que espera cinco ou mais anos por
uma única chuva.
Celso Pinheiro Filho
Benedito Francisco Nogueira Tapety pertence ao grupo, não tão
pequeno, de jovens poetas que pagaram tributo ao chamado “mal do
século”, ou seja, a tuberculose e a poes ia romântica. Como tal escola
estética se prolongou por muitos anos, de cambulhada com o
Parnasianismo e o Simbolismo, muitos poetas de alvorecer do século XX
foram contaminados pelo tal mal.
Nogueira Tapety, que nasceu em Oeiras no dia 30 de dezembro de
1890, teve a sorte, embora tardia, de encontrar dedicados admiradores, em
seu tempo e depois, e que tiraram do ineditismo em livro as suas melhores
poesias. Arte eTormento, edição de 1990, reúne a maior parte de seus
escritos poéticos, um pouco de prosa e trechos de seu diário, quando o
poeta estava em tratamento na ilha da Madeira.
Homenagem ao primeiro centenário de Nogueira Tapety, o livro foi
editado pelo Instituto Histórico de Oeiras e Academia Piauiense de Letras,
e é o bastante para o conhecimento, de fato, de um poeta notável, alinhado
no que os críticos chamam de Romantismo tardio, pois o próprio Castro
Alves, morto em 1871, já representava a fase final da escola. A
curiosidade, em relação aos poetas dessa fase, fase de transição, atropelo do
novo século, escolas estéticas surgindo, é que adotaram o Romantismo
como sentimento e o Parnasianismo como forma.
Paradoxal em principio tal posição, os poetas brasileiros do começo
do século praticavam, por exemplo, a camisa-de-força do soneto parnasiano
com o sentimento libertário e lírico dos românticos. E a essa regra não
fugiu Nogueira Tapety e seus contemporâneos poetas, no Piauí, no
Maranhão, no Rio de Janeiro, na província pequena e na província grande.
Escapavam do epigonismo pelo desvão do seu talento e de sua marca
pessoal de linguagem poética.
A atividade leiga de Nogueira Tapety, ou seja, fora da poesia, foi
estudar na terra natal e se formar em Direito no Recife. E em breve está
como promotor público (1912) em sua cidade. Disse Celso Pinheiro Filho:
“Foi a oportunidade de Tapety reencontrar-se com os doutores e os
poetas simplesmente boêmios de sua geração, que faziam serenatas até o
alvorecer”. E por via das serenatas e as mesas dos bares que quase toda
uma geração foi sacrificada.
Homem que adquirira grande cultura, embora bem jovem, Nogueira
Tapety ainda lecionou filosofia, psicologia e lógica, até surgirem, em 1915,
os primeiros sintomas da doença. Retira-se para a ilha da Madeira, onde
sente melhora, mas acaba voltando para morrer na terra de sua infância, a
fazenda Canela.
Para se ter idéia dos preconceitos votados à tuberculose à época,
citemos A. Tito Filho, um dos apresentadores da obra Arte eTormento: “Ao
falecer, em 1918, a casa em que morava foi purificada pelo fogo: a rede, as
roupas, os calçados, os papéis, tudo queimado”. Nogueira Tapety foi o
primeiro ocupante, postumamente, da cadeira 15 da Academia Piauiense de
Letras.
A Poesia Piauiense do Século XX – Antologia - Assis Brasil – 1995 – p.
79/80.
Fonte: http://www.fnt.org.br/