FIM DE ANO
Por Cunha e Silva Filho Em: 25/10/2021, às 14H09
SESSÃO NOSTALGIA:
Fim de Ano
Cunha e Silva Filho
Volto à minha coluna. Ah, quanta água não correu entre a ausência da escrita dirigida a quem tem alguma estima pelo que digo, comento, reclamo e me indigno e este texto de hoje! Estar ausente no espaço da coluna me deixa triste e pesado, sem falar num estado de angústia, de carência, de algo que, indefinido, me está faltando como alento de viver, de poder respirar e sentir que estou ainda com a lucidez do filósofo René Descartes (1596-1650): “Penso, logo existo,” e ainda com o sentimento de que me omiti, de que me calei ou até de que fui cúmplice. Escrever, o mais quanto seja possível de nossas energias, me leva a esta conclusão: é algo que me dá a certeza de que estou sendo útil a alguém ou a alguma coisa. Escrever é dar forma aos sentimentos, ideias e pensamentos. É quase fisiológico, um ato que do viver se torna uma rotina doce de executar, ainda que concorde com Raquel de Queirós (1910-2003) naquele ponto em que ela declara ser desgastante escrever, que eu entendo como algo equivalente a afirmar ser difícil escrever.
O crítico Álvaro Lins (1912-1970) sempre deu a maior atenção ao estilo de um autor. Sem estilo, para ele, o escritor fica incompleto, sem grandeza, sem força de convencimento da realidade recriada, seja pela ficção, seja pela poesia.É preciso que, no arranjo das frases, exista uma equilíbrio tão íntimo e tão único entre as palavras que constituam frases ou enunciados. ou, como ele dizia, os “vocábulos tornados seres-vivos”.(Literatura e vida literária. – diário e confissões. 1º e 2º vols. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1963, p. 43-45). Ele liga a questão do estilo a uma justaposição das palavras, cuja combinação exata nos passa uma “sensação existencial”. A palavra, então, para ele não é apenas um signo arbitrário de que falam os linguistas, está antes mais relacionada ao cratilismo da concepção de Platão, i.e., uma percepção de que entre as coisas e as palavras, reportando-se Vítor Manuel Aguiar e Silva (Teoria da literatura. 6 ed. Coimbra: Livraria Almedina,1984, p. 664-669), ao pensamento de Platão, há “motivo,” visto que ‘quem conhece as palavras, também conhece as coisas.’ Eu me pergunto, não haveria nisso uma analogia com o que Lins define palavras em função do enunciado como “seres-vivos?”
O que comento acima faz parte desta marcação de fim de ano, que é um retorno a um diálogo com o leitor e, num diálogo, os temas podem mudar, os assuntos podem pular como borboletas movimentando-se em várias direções.
Assim sendo, a notícia que mais me interessou foi a morte de Mandela, este construtor, por assim dizer, de uma nação, já que um país dividido pelo apartheid não é uma país completo nem pode ser chamado de nação. Mandela pertence à galeria dos grandes homens públicos da Humanidade, como Lincoln, Gandhi, Martin Luther King e poucos outros. Só não ficou bem nas cerimônias e homenagens prestadas a Mandela foi a comitiva de presidentes brasileiros, verdadeira colcha de retalhos ideológica.Não me cabe na cabeça a ideia de alguém ter idealizado essa ida em conjunto de presidentes da República brasileira que nada representam, no plano doa valores universais simbolizados pela figura grandiosa de Mandela.Eu até diria que é preciso ter fibra, ser querido por um povo, ser amado como foi Mandela, ser respeitado como foi Mandela - e não creio que os presidentes que lá foram representar o povo brasileiro se enquadrem com rigor nesses atributos. Nosso país é carecente de homens de grande envergadura cívica, de grandeza de sentimentos, de amor à paz, de simplicidade com o seu povo e de querer verdadeiramente o bem-estar de toda uma nação.
Numa crônica brilhante e corajosa a escritora Heloísa Seixas (O Globo, 14/12/2013, p. 23), nos relata que, na fase de manifestações nas ruas reivindicando por melhoras condições de vida em vários setores do pais, ouvira de um motorista de táxi a frase seguinte: “No Brasil, tudo vira moda. Até manifestações de rua” A escritora conta que, ao ouvir o que comentou o motorista, fez questão de discordar dele, embora o motorista insistisse que era verdade o que ele dizia Dito e feito, em algumas semanas a onda dos protestos se esvaziou. Era mesmo uma moda entre as muitas que no país se exibe.
A frase do motorista não foi tampouco por ela esquecida, ou melhor, antes fora relembrada algumas semanas após voltar da Alemanha onde passara “quase um mês”. Ao desembarcar no Rio, a cronista fez algumas constatações. Somos um “povo fútil.” Fútil por várias razões: pouco valor damos à cultura, ao cuidado com a nossa Biblioteca Nacional, não frequentamos os museus, arquivos. Pouco valor damos aos livros, ao que possuímos de bom como patrimônio histórico-cultural. Ela enumera uma série de futilidades que já criaram raízes no país: a) morar em barracos e ter uma parabólica;b) ter mais televisores do que geladeiras; c) não frequentar bibliotecas mas ter febre de ficar em lan houses; d) temos “em massa” analfabetos funcionais que se debandaram, diretamente para o Facebook;e) somos uma classe média de compradores em Miami a tal ponto que já nessa cidade há vendedores falando português; f) somos campeões de botox no rosto e silicone nos seios, até se tornando exigências de menininhas de 14 e 15 anos para seus pais; g) abrimos academias de ginástica em cada quarteirão de São Paulo e Rio de Janeiro;h) somos a maior estatística em cirurgias plásticas. E por aí vai a nossa vaidade.A cronista, só pra concluir desabafa:
“Voltei da viagem com essa sensação de que somos mesmo fúteis, superficiais, e me lembrei do motorista do táxi.”
.