Férias em Barras do Marataoã

Elmar Carvalho - da Academia Piauiense de Letras

Parte I

Na reunião de sábado, oito de agosto, na Academia Piauiense, vários confrades se referiram, de forma efusiva e elogiosa, ao livro Rua da Glória, da autoria de Carlos Augusto de Figueiredo Monteiro, professor universitário, geógrafo e escritor, nascido em Teresina. Rua da Glória é a atual Lisandro Nogueira, onde ele nasceu, na casa de sua avó materna, e na qual viveu a sua infância e parte da juventude.

O acadêmico Pedro da Silva Ribeiro lhe enalteceu as qualidades do estilo e do conteúdo. Disse que além de sua importância genealógica, o livro discorre sobre o crescimento de Teresina. Elogiou-lhe ainda a correção gramatical. Fonseca Neto, na mesma toada e quase em uníssono, lhe fez calorosos elogios, e disse que foi um dos que sugeriram o nome do autor para receber o título de Doutor Honoris Causa, que lhe foi concedido pela Universidade Federal do Piauí.

Acrescentou que os quatro volumes de suas memórias também se reportam a Campo Maior, Barras, União e Miguel Alves, e que cada um se refere a uma geração de parentes e ancestrais do autor. Informou, ainda, que o autor passou mais de vinte anos a escrever essa notável obra memorialística. 

O escritor e poeta Dílson Lages Monteiro, recém eleito para a nossa Academia, não lhe regateou palavras de elogio. Aliás, foi bastante enfático, quando falou da capacidade de síntese do memorialista, e quando se referiu ao lirismo de sua linguagem, inclusive qualificando-a como uma obra que merece ser relida. Coroando suas palavras, disse que o seu texto é comovente, e comparável às memórias de Pedro Nava, observando-se, claro, as propostas e peculiaridades de cada um.

Diante dessas palavras de fartos e entusiasmados elogios, e também considerando o que eu já tinha ouvido e lido sobre Rua da Glória, tomei a decisão de adquiri-lo. Na segunda-feira seguinte, logo na parte da manhã, me dirigi à livraria Monsenhor Melo, da Editora da UFPI – EDUFPI, dirigida pelo professor e economista Ricardo Alaggio Ribeiro, onde adquiri os quatro alentados volumes, que ainda trazem belas ilustrações feitas pelo autor, inclusive as da capa. Disse-lhe, uma vez que gosto de dar boas notícias, que as memórias de Carlos Augusto de Figueiredo Monteiro tinham sido calorosamente elogiadas na sessão de sábado.

Em virtude de projeto literário pessoal que desenvolvo no momento, sobretudo a continuidade deste Diário Incontínuo, previsto para ser encerrado no final do corrente ano, e serviços de postagem (publicação) de textos em meu blog e em sites em que mantenho blogs ou colunas, como Entretextos e Proparnaíba, não pude ler esse monumento memorialístico na íntegra, como ele bem merece.

Optei por ler inicialmente as belas páginas em que o memorialista narra e descreve as suas férias em Miguel Alves e Barras. E pude constatar que as louvações de meus confrades foram justas. Parafraseando o poeta Torquato Neto, eles louvaram o que bem merecia ser louvado.

 Parte II

Em Rua da Glória, esse grande livro de memórias – grande tanto pelos seus quatro volumes, como por ser um belo trabalho de literatura – o autor, ao tempo em que narra fatos acontecidos com sua pessoa e com os familiares mais próximos, também conta episódios interessantes de que foram protagonistas amigos e parentes mais remotos. Termina sendo um grande contador de histórias, que se entrelaçavam ou seguiam paralelas à história de sua própria vida, como comprovo com o episódio que passo a recontar de forma sintética.

Nas férias em Barras, ele fez amizade com a senhora Maria Pires da Mota e com suas duas filhas, Marieta e Senhorinha, todas bem mais velhas que ele, que ainda se avizinhava de seus 14 anos de idade. Marieta era a mais velha, e também a mais circunspecta, mais sisuda, mas que também lhe dava atenção.

Senhorinha, nas palavras do memorialista, “era muito expansiva e simpática”. Tornou-se compadre “de fogueira” desta última, com quem fazia passeios pela pequena urbe. Numa das vezes, visitaram a casa do coronel Regino Melo, na qual se encontrava o interventor federal do Piauí, Leônidas de Castro Melo, que passava uns dias de descanso na casa de seu pai.

Dona Maria e as filhas pertenciam a tradicional estirpe barrense e piauiense. Moravam numa das mais antigas casas solarengas da cidade, que ele descreve como sendo “magnífica representante da arquitetura urbana piauiense. Era uma morada inteira de porta e seis janelas, com caixilhos largos de madeira e folhas pesadas”.

Esse vetusto solar escondia um mistério. Recluso num dos quartos, sem nenhum contato com o mundo exterior e com pessoas de fora, vivia Neno, “o filho doente de dona Maria”. Formado em odontologia, exercera a profissão em União, de forma correta e competente. Segundo o relato do livro, “era um rapaz alto, bonito que fizera suspirar as moças casadoiras do local”.

Contudo, tempos depois, Neno passou a abandonar o seu consultório, para fazer escavações nos arredores da cidade, próximo a um dos outeiros dos arredores. Cada vez mais ele se dedicava a esse grosseiro labor, e progressivamente se extenuava nesse misterioso mister, pesado e inglório, chegando ao ponto de emagrecer.

Os comentários começaram a se espalhar na pequena comunidade. Alguns achavam que alguma alma penada lhe indicara algum local onde existiria um tesouro. Os curiosos começaram a espiar a sua dura labuta, em que o dentista, em lugar de leves e delicados instrumentos, passou a manobrar vigorosamente pás, enxadas e pesadas picaretas.

Foi constatado que a escavação se ramificava, de forma intrincada, como se fora emaranhado labirinto. Nesse trabalho estéril de uma inútil construção, Neno “vivia ensimesmado e mudo. Isolado do mundo”. Precisou ser afastado à força dessa sua labuta estafante, em que definhava de forma acentuada.

Após essa providência, passou a viver recluso, como dito, num dos dormitórios da casa senhorial de sua mãe, em Barras, da qual o jovem Carlos Augusto de Figueiredo Monteiro, sentado na sala de visitas, lhe ouvia o murmurar, que deixava perceber-lhe a voz possante e grave. O escritor acha que ele talvez fosse vítima de esquizofrenia, em caso um tanto semelhante ao que acometera o bailarino Nyjinsky.

Neno foi o Dédalo e o Minotauro de seu próprio labirinto. E talvez tenha sido uma espécie de esfinge que não conseguiu decifrar o enigma de sua própria vida, de uma beleza cintilante e improfícua, como uma estrela cadente que se exaure no átimo culminante de sua glória.