Amigos sinceros, ex-alunos, colegas e admiradores do grande mestre começam a se manifestar pelo passamento do grande filólogo, Leodegário A. de Azevedo Filho. De Portugal, recebemos esse belo, verdadeiro e sentido texto, escrito pelo poeta Albano Martins (embaixo, à minha esquerda), amigo de muitos anos.
Tinha três paixões, todas grandes, avassaladoras, que diuturna e devotadamente alimentava: Ilka (a quem terna e familiarmente tratava por cocota), Camões e os canários – os seus gentis “marfim-satiné” -, que, para incomodidade da Ilka, sua dilecta esposa e nossa querida Amiga, se acantonavam lá ao fundo, na cozinha (havia também alguns exemplares, de mais modesta plumagem e menos refinada coloração, na casa de Cabo Frio) e que constituíam a sua primeira e mais fervorosa preocupação matinal. Era a hora da limpeza e da cuidada alimentação servida ao pormenor aos implumes filhos dos “satiné” e quejandos, acomodados nos improvisados ninhos. Algumas vezes, em viagem para o Rio, levámos connosco, na bagagem, um ou dois (às vezes mais) exemplares que a sua nunca desmentida e nunca satisfeita paixão nos exigia ou reclamava. Só nos últimos anos, jubilado já da UERJ e da UFRJ, esta paixão esmoreceu. De Camões, paixão nunca esmorecida, que herdou de Emanuel Pereira Filho, a quem pediu emprestado, para o ampliar, o critério do duplo testemunho quinhentista para cunhar a autenticidade dos textos que, de forma cega e um tanto anárquica, a tradição acumulou, aumentando assim desmesurada e acriticamente a obra lírica do poeta (obra que, como lembra António Houaiss, chegou a atingir as setecentas unidades), da paixão por Camões, dizia, sobram os oito volumes editados pela Imprensa Nacional-Casa da Moeda sob o título Lírica de Camões, que, sendo a obra (lamentavelmente interrompida) duma vida, são também a laboriosa tentativa de correcção de erros (fruto, muitas vezes, de exacerbadas paixões) acumulados ao longo dos anos. Fica a obra incompleta. Faltam aqui: o tomo II das “Éclogas”, que, em Julho passado (já visivelmente enfraquecido), me dizia estar entregue na IN-CM, e os volumes com os Tercetos, as Sextinas, as Oitavas e as Redondilhas. E falta o volume final (muitas vezes me falou dele), onde, depois do trabalho crítico desenvolvido ao longo dos diversos volumes, ficariam reunidos os textos de incontestada autenticidade, agora despidos do aparato crítico.
A obra de Leodegário de Azevedo Filho não se cinge, porém, à “epopeia” que foi o seu trabalho (a que assentaria bem o epíteto de ciclópico) de expurgação da obra lírica de Camões. Também Os Lusíadas e o problema da editio princeps do poema mereceram, em anos mais próximos, o seu cuidado e atenção. Mais recentemente, para o dito efeito, ocupava-se da primeira tradução, para o castelhano, do poema camoniano, encontrando nela os argumentos bastantes para a defesa do seu ponto de vista ( consulte-se, a este respeito, o nº 43 deste jornal ). Mas a obra de Leodegário – vasta e singular – vai muito além. Vários outros poetas, de um e outro lado do Atlântico, mereceram a sua atenção e desvelo. Veja-se o trabalho empreendido com a publicação das “Crónicas de viagem” e das “Crónicas de educação” de Cecília Meireles, poeta a quem já dedicara, aliás, em outras ocasiões, demorada atenção (atente-se, por exemplo, no volume Poesia e estilo de Cecília Meireles, de 1970). Atenção que também dedicou, entre outros, a Fernando Pessoa, a Bocage, Pêro Meogo e Anchieta. E importa lembrar os seus trabalhos de natureza didáctica, de promoção e defesa da língua, bem como os de teoria, crítica e estética literária, sem esquecer os consagrados à problemática do verso. Uma obra vasta e singular, dissemos, mas também diversificada.
Morreu às 3h 10m do dia 30 do passado mês de janeiro, com 84 anos (fizera-os dois dias antes), na cidade do Rio de Janeiro. Aqui o deixamos escrito, nesta hora de mágoa pela perda do Amigo, mas também em memória dum homem a quem Portugal deve, desde há muito, prestimosa homenagem e reconhecimento. Além de grande filólogo e camonista militante, de excepção, Leodegário de Azevedo Filho foi também grande amigo do nosso país, que frequentemente visitava e onde tinha numerosos amigos. Lembra-se, aos que o não sabem ou esqueceram, que Leodegário (o Leo, como era conhecido entre os amigos), foi, durante o ano de 1972, professor visitante da Universidade de Coimbra. Também esta, por isso, está de luto. Assim o cremos, ao menos. A exemplaridade e a excelência têm de ser reconhecidas e, mais do que isso, assinaladas e honradas.
Albano Martins