ÊXTASE
Por Margarete Hülsendeger Em: 21/12/2012, às 13H46
O que pode alguém fazer quando tem trinta anos e, virando a esquina de repente, é tomado por um sentimento de absoluta felicidade — felicidade absoluta!
Katherine Masfield
Você já viveu dias nos quais tudo conspira a seu favor? Quando todas as coisas parecem se encaixar? Quando a felicidade é tão intensa que você tem a impressão que o seu sangue vai começar a ferver? Sim! Então você será capaz de entender o conto “Bliss” (em português “Felicidade”) da autora neozelandesa, Katherine Masfield (1888-1923).
Nessa história a personagem principal e narradora chama-se Bertha Young, uma típica mulher burguesa da primeira metade do século XX. O conto começa com Bertha experimentando uma epifania ou uma espécie de êxtase. Nesse momento, com a duração de um dia, ela luta contra o desejo de “correr em vez de andar; deslizar pelo assoalho reluzente de sua casa, marcando passos de dança; rodar um aro; jogar alguma coisa para cima para voltar a pegá-la ou ficar quieta e rir... simplesmente por nada”.
A felicidade de Bertha Young é tão contagiante que o leitor é levado a sentir e até mesmo invejar essa euforia. No entanto, conforme a leitura prossegue, percebe-se que esse contentamento é um sonho meio delirante de uma mulher que, apesar dos seus trinta anos, não só é imatura, mas completamente despreparada para vida.
Em “Bliss” não há ação, a história está centrada na passividade da personagem principal. Tudo ocorre apenas na mente de Bertha Young. Desde a chegada em casa com a sua felicidade recém-descoberta, passando pelo desejo de cuidar da filha pequena, sendo capaz, inclusive, de enfrentar a babá autoritária até o momento que embevecida se vê diante da pereira que existe em seu jardim. Somente quando observa um gato branco e outro cinza circular entre os ramos da árvore é que ela se permite sentir um pouco de medo e insegurança. Apenas nesse rápido momento o leitor nota que toda essa felicidade pode ser só uma ilusão.
Bertha Young não consegue racionalizar seus sentimentos e por conta disso, mergulha de cabeça em uma vida de fantasia. Na verdade, se formos além do texto, veremos que Katherine Masfield nada mais faz do que uma critica mordaz a sociedade de sua época e, consequentemente, ao papel da mulher dentro dessa mesma sociedade. Afinal, se não é permitido à mulher traçar seus próprios caminhos, acaba-lhe restando apenas a fantasia de uma vida perfeita.
Todos os cenários do conto refletem o ambiente de classe média pós-vitoriana da segunda década do século XX: o marido indulgente, a casa bem arrumada, o jantar delicioso e até mesmo os amigos pseudointelectuais. Pode-se dizer que a única nota dissonante na história é a presença de outra personagem feminina, a senhorita Perla Fulton; uma mulher misteriosa que Bertha conheceu no clube. Segundo as palavras da própria Bertha, “Até certo ponto, achava a senhorita Fulton extraordinariamente franca; mas havia nela essa linha divisória impossível de transpor”. Era o superficial tentando compreender o profundo e, ao não conseguir, conformando-se em aceitar e até mesmo admirar.
E assim ao longo de todo conto Katherine Masfield vai construindo a personalidade e a vida de Bertha Young. Em alguns momentos ela realmente nos faz acreditar que essa felicidade (beirando a histeria) é possível e em outros alerta-nos (muito sutilmente) que tudo não passa de uma ilusão e, portanto, uma perigosa armadilha emocional.
Alguns críticos acreditam que toda a obra (não só esse conto) é um espelho da vida da autora. Ela também viveu essa vida de mentira, onde tudo é cor de rosa e a posição das almofadas no sofá é de vital importância para o destino do universo. No entanto, assim como Bertha Young, Katherine Masfield também descobriu que em meio a felicidade mais absurda existem gatos estranhos e mulheres misteriosas capazes de destruir facilmente qualquer fantasia que possamos criar. A vida e as pessoas são frágeis, assim como a pereira no jardim de Bertha Young.
No vou contar o fim dessa história, você deve ler. No entanto, preciso avisar, não espere um final conclusivo tipo, “Ponto final. The End”, esse não é o estilo de Katherine Mansfield. À maneira do escritor russo, Anton Tchekov, Masfield não acreditava em finais surpreendentes, ela preferia histórias que permanecessem ecoando na mente do leitor, sugerindo novas leituras e interpretações. Portanto, leia “Bliss” e crie o seu próprio final.