Carlos Drummond de Andrade
Carlos Drummond de Andrade

Alguma Poesia (1930), livro de estréia de Carlos Drummond de Andrade, foi uma estreia discreta, como aliás a de todos os poetas modernistas. Antonio Cândido, num depoimento sobre Graciliano Ramos, no YouTube, lembra aos leitores de hoje que o Modernismo não tomou de assalto a literatura brasileira em 1922. Foi um movimento pequeno, localizado, à revelia do Brasil. Sua importância e sua influência foram se ampliando e se solidifcando muito aos poucos. 
 
Drummond estreou em 1930 com este livro onde já estão presentes muitos dos elementos que ele iria amadurecer e aprofundar ao longo da vida. 
 
Elementos que poderiam na época parecer uma adesão automática a certas táticas modernistas (o poema curtíssimo, o poema-piada, a gramática e a grafia bárbaras das ruas, a ironia, a desconstruções dos ícones românticos e parnasianos), mas hoje, em retrospecto, podemos considerar traços essenciais do autor. Das muitas portas abertas pela agitação modernista, foi por estas que ele se esgueirou com mais espontaneidade. 
 
O Modernismo de 1992 era afeito aos manifestos, às palavras de ordem. Drummond não redigiu nenhum, ao que eu saiba, mas vários poemas deste primeiro livro têm um pouco esse tom de quem dá as cartas, de quem anuncia valores. 
 
É o caso de “Explicação”, que começa lembrando Manuel Bandeira (“Uns tomam éter, outros tomam cocaína, / já tomei tristeza, hoje tomo alegria.”): 
 

Meu verso é minha consolação.

Meu verso é minha cachaça. Todo mundo tem sua cachaça.

Para beber, copo de cristal, canequinha de folha-de-flandres,

folha de taioba, pouco importa: tudo serve. 

 

Para louvar a Deus como para aliviar o peito,

queixar o desprezo da morena, cantar minha vida e trabalhos

é que faço meu verso. E meu verso me agrada.

 
Confesso que não visualizo com facilidade o poeta, com sua calva precoce e seus óculos redondos, pedindo uma bicada no balcão para curtir “o desprezo da morena”. Me soa como uma precoce infiltração sambista, talvez, agarrada a esse ubíquo verbo “cantar”. De mais a mais, a esta altura a intelectualidade e o samba já começavam a passear de braços dados, como registram Hermano Vianna em O Mistério do Samba (1995) e André Gardel em O encontro entre Bandeira e Sinhô (1996). 
 

Meu verso me agrada sempre...

Ele às vezes tem o ar sem-vergonha de quem vai dar uma cambalhota,

mas não é para o público, é para mim mesmo essa cambalhota.

Eu bem me entendo.

Não sou alegre. Sou até muito triste.

 

A “cambalhota” soma-se a muitos versos, já presentes neste primeiro livro, em que o poeta se oferece como algo parecido com um clown, um artista de circo, ocupações que a intelectualidade da época olhava com os mesmos olhos com que um intelectual de hoje observa o baile funk. E alguém imaginaria os grandes poetas da geração anterior (Bilac, Cruz e Sousa, Guimarães Passos) apregoando uma cambalhota? 
 
E ficamos com esta última linha, e seu eco inevitável trazendo à memória Cecília Meireles e seu “Não sou alegre, nem triste: sou poeta”, um achado de límpida simplicidade, que logo se incorporou à nossa linguagem falada. 
 

A culpa é da sombra das bananeiras de meu país, esta sombra mole, preguiçosa.

Há dias em que ando na rua de olhos baixos

para que ninguém desconfie, ninguém perceba

que passei a noite inteira chorando.

 

A sombra das bananeiras! Esta planta, velho símbolo nacional, é insistentemente convocada pelo poeta estreante (v. “Cidadezinha qualquer”, “Fuga”, “Sesta”). Faz parte do nosso Brasil, desde aquele tempo, o hábito de atribuir ao clima tropical e sua flora as características indolentes do povo. 


 

 

Mais interessante é a dicotomia que Drummond começa a estabelecer nas linhas seguintes:
 

Estou no cinema vendo fita de Hoot Gibson,

de repente ouço a voz de uma viola...

saio desanimado...

Ah, ser filho de fazendeiro!

À beira do São Francisco, do Paraíba ou de qualquer córrego vagabundo,

é sempre a mesma sen-si-bi-li-da-de.

E a gente viajando na pátria sente saudades na pátria.

Aquela casa de nove andares comerciais

é muito interessante.

A casa colonial da fazenda também era...

No elevador penso na roça,

na roça penso no elevador.

 
Aqui não se trata simplesmente do poder da natureza. O poeta nos oferece algo em troca dela: Hollywood, por exemplo. E Drummond nunca foi imune às seduções do cinema de seu tempo, de Charles Chaplin a Greta Garbo. O cinema aparece aos olhos do rapaz como a promessa de um mundo feérico, onde de vez em quando as aventuras dos cowboys são estragadas pela contaminação bárbara de “uma viola”.

 


 

O Modernismo pós-1922 deitou e rolou em cima desses contrastes entre Rural e Urbano – contrastes que o Tropicalismo viria anos depois tonificar, valendo-se de um momento cultural muito mais vibrante no cinema, nas artes plásticas, no teatro, na própria literatura. 
 
A comparação drummondiana entre “a casa de nove andares comerciais” e “a casa colonial da fazenda” são o equivalente, em seu tempo, à “força da grana que ergue e destrói coisas belas”. E o jovem poeta já nos traz esta fórmula sua, que considero uma das mais diretas e inesquecíveis: “No elevador penso na roça / na roça penso no elevador”. 
 

Quem me fez assim foi minha gente e minha terra

e eu gosto bem de ter nascido com essa tara.

Para mim, de todas as burrices, a maior é suspirar pela Europa

A Europa é uma cidade muito velha onde só fazem caso de dinheiro

e tem umas atrizes de pernas adjetivas que passam a perna na gente.

O francês, o italiano, o judeu falam uma língua de farrapos.

Aqui ao menos a gente sabe que tudo é uma canalha só,

lê o seu jornal, mete a língua no governo,

queixa-se da vida (a vida está tão cara)

e no fim dá certo.

 
Ariano Suassuna, que se recusava a viajar para fora do Brasil, assinaria com entusiasmo esse verso sobre a burrice de suspirar pela Europa. Drummond, na verdura dos 28 anos, pensa muito na Europa em termos das pernas das atrizes, que o cinema começava a propagar e que as ruas de cidades como Belo Horizonte e Rio de Janeiro já se juntavam aos espetáculos das calçadas, do footing ao entardecer.
 
São curiosos estes versos sobre o fato de “ser tudo uma canalha só”. Cada leitor tem seu viés, é claro; eu já tive um tempo em que via nestas linhas uma aconchegante sensação de ser brasileiro como todo mundo. Hoje, nesta conflagrada terceira década do novo século, perto de se completarem os 100 anos do poema de Drummond, já não sei se um dia verei (ou alguém verá), mesmo poeticamente, os brasileiros como “tudo uma canalha só”. Houve uma clivagem brutal nestes últimos quarenta anos. 
 

Se meu verso não deu certo, foi seu ouvido que entortou.

Eu não disse ao senhor que não sou senão poeta?

 
A pergunta deste final – desabusada, cheia de intimidades – equivale a um pequeno manifesto sem cabeçalho. Tímido, discreto e convencional, por fora, Drummond também sabia ser irreverente, emotivo sem melodrama, menino sem puerilidade. Andando na rua poderia ser tomado por um parnasiano, mas dentro dele (como dentro da poesia brasileira) surgia de forma irresistível essa busca da linguagem direta e simples da rua à sua volta, da admiração franca mas nunca embasbacada diante do cinema estrangeiro, desse interesse pela coisas novas, coisas que podem se multiplicar, sob a condição de que deixem intactas as coisas velhas... 


Enfim: uma contradição que um século depois o país ainda não resolveu.