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Eu não sou. Sou de outra época. Sou do tempo de um capitalismo primitivo, arcaico, luxuoso, feito tricotado em ouro e pedras preciosas, de um outro modo, daquele tempo em que o Palácio era imagem em busca de sua natureza profunda. Ali se dispunha de uma sala de música onde se ouvia principalmente Beethoven, de um piano Pleyel, a vitrine onde Pierre Bataillon ostentava sua coleção de violinos (o Guarnerius, o Bergonzi, o Klotz, o Vuillaume), as gravuras representando Viotti, Baillot, David, Kreuzer, Vieuxtemps, Joachim; a máscara mortuária de Beethoven, laureado em bronze, de Stiasny. A Biblioteca, em que alguém uma noite leu em voz alta versos de Lamartine. E salas e salas se interrogando para quê, salões e galerias e cômodos se intercomunicando por portas sucessivas que se abriam em galerias e corredores restritos, que se fechavam em si mesmos, ao som do piano de Pierre Bataillon dialogando com o violino de Frei Lothar uma sonata Mozart como alguém que se concentra em si mesmo, de um poder surdo, ágil e temível que se expressava nas paredes de estuque pintado por irisações de um ouro esverdeado e escuro, na entrançadura de seus ritmos de galhadas e folhagens de uma vegetação alucinada e japonesa que subia por aquelas formas pelo teto multirefletido nos visotados espelhos de cristal e nas flores dos lustres de modo a evocar a lembrança de exótico prazer. Sim, sou eu um velho de um outro século e ali vivi, observando, aprendendo e comendo durante o longo daqueles anos todos no círculo e em torno daquela povoação de objetos e móveis antigos que descreviam monstros consumidores: como na cômoda veneziana a visão da atividade sexualizada da imagem; no armário de Boulle cenas de caça com javalis do consumo e cães mastigando sangrentas aves abatidas a tiros pelo Duc de Chartres e outros cavaleiros fidalgos na idiotia de vistosas calças vermelhas e botas pretas; no silêncio rigoroso do gabinete inglês; na dinâmica, na morfologia prostituta do divã de Delanois; na unidade e variante elíptica do canapê - e nos cipós, íris, cardos, insetos estilizados, poliformes, incorporando-se aos móveis e às linhas dos painéis franceses num delírio neo-rococó como não quis a natureza: estátuas sobre lambrequins, rocalhas e rosáceas ecléticas, urnas nas cimalhas dos balcões simbolizando a energia, a ontologia e o desejo do capitalismo de tudo consumir, de tudo gastar, de tudo produzir, de tudo poupar e de tudo faltar e apropriar-se, transbordando e abortando na loucura, na miséria e na morte - cariátides, capitéis, folhagens da selva - o pequenino Pierre Bataillon comeu e consumiu e fez em detritos toda a sua imensa fortuna na degustação de suas mobílias suntuosas e amontoadas e sem uso, no processo da esquizofrenia desejante e reprodutora, no fluxo de sucção de sua fina boca desumanizada para pôr fim ao exagerado dos seus lucros surpreendentes, no autofágico prazer do mínimo consumo diário de seu capital miraculoso, sangrento e luxuriante para transplantar ali a qualquer custo todo espírito do humanismo europeu que se deslocava em navios fretados, trazidos, no embaraço dos seus belos e artísticos objetos inúteis, de uma arte vã, fútil e suicida porque improdutiva, insaciável e escrota. Tal é a ironia daqueles esforços feitos a fim de engastar no horizonte os filamentos de ouro e tomar mais nítida a impressão de distância, para emporcalhar de ouro a empestada história - em doença, em loucura, em mortes e crimes impunes e imperiais (vários povos desapareceram ali) nos critérios de uma singular estética do capital, nos vazios e nos inócuos de um paganismo coquete, amoral e moderno.