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(*)Dílson Lages Monteiro

Há algumas semanas, estive na cidade-berço de minhas origens, Barras do Marathaoan, para o lançamento de uma obra literária – fato excepcional por lá e, por isso, razão suficiente para comemorações; principalmente, porque a obra não apenas tematiza a paisagem humana e geográfica do município, mas também porque reúne qualidades inquestionáveis.

Muitos barrenses acolheram o convite do autor e o prédio da antiga usina de energia ficou comprimida de gente disposta a degustar as páginas de Estórias de minha gente (Entretextos/Nova Aliança), livro de estreia de Constâncio Furtado. Convidado para fazer a apresentação do livro, ative-me em examinar-lhe a essência e manifestar meu sincero olhar de leitor. Apresentações não tornam um livro mais ou menos lido, mas podem favorecer discussões e a própria circulação da obra, o que  já é um motivo para felicidade.

Constâncio Furtado nasceu em Barras-PI, em 1951. Aos vinte anos, deixou a terra de nascimento para buscar as oportunidades em outras paragens, somente retornando ao chão natal em 1990, quando se estabeleceu  na zona rural. De seu regresso aos dias correntes, dividiu o tempo entre os afazeres do campo e o ofício de escrever. De sua lavra, saíram vários livros que recuperam os costumes e hábitos do espaço rural, como Estórias de minha gente, o primeiro a ser editado. Consiste em livro escrito com o gosto da terra onde o escritor nasceu; com o afeto, as dores e as esperanças de sua gente; as dores e esperanças dos mais humildes. 

O livro de Constâncio se insere no rol das obras que reforçam a tradição da literatura oral. De Homero à era digital, seu valor tem-se reafirmado incontestavelmente. As tecnologias modernas, que aparentemente poderiam representar a essa forma literária uma ameaça, acabaram também por contribuir  para reforçar-lhes o seu lugar de excelência como receptáculo do patrimônio cultural de comunidades rurais ou de pequenos lugarejos, fortemente influenciados pelo modo de vida da roça. As tecnologias modernas, embora modifiquem severamente o modo de vida campestre, também auxiliam a literatura oral na difusão – e por que não na conservação - de antigos valores e costumes de pequenas comunidades, os quais, por meio desse gênero, paradoxalmente, vencem o tempo e as barreiras geográficas e reforçam, até, o registro das formas de constituição da linguagem de grupos sociais específicos.

Historicamente, contos como os de Estórias de minha gente contribuem não apenas para documentar o aqui e agora de povos e regiões, mas também, acentuadamente, por meio da aparente simplicidade da escritura, que é uma marca linguística elogiável dessa vertente literária, subverter a voz do narrador, para expressar uma visão de mundo que é coletiva. Em estórias de minha gente, pois, os narradores englobam discursos anônimos, frutos do contar e recontar próprios da tradição oral. Assim, em Zequinha Piaba, Neco, Bena, Dr. Virgílio, Gerardo, Bernardo Moura e dezenas e dezenas de personagens, muitos deles sem nome, a fim de lhe revigorar a aparente fragilidade ou poder, ou mesmo por questão de conveniência, está a voz coletiva dos trabalhadores rurais ou dos senhores de terra; a voz dos desafortunados ou a dos favorecidos pela sorte, uma voz que a literatura em uma de suas funções magistrais recompõe tão habilmente, facilitando o alcance imediato da comunicação.

Os contos que escreve Constâncio chegam fáceis ao leitor, preso pela sintaxe e pelo vocabulário bem piauienses, preso por estórias que o autor ouviu e recontou, ocorridas na segunda metade do século XX e no lugar social de que fala, o município de Barras do Marathaoan. Estórias recriadas com humor, indignação, surpresa e, até mesmo, para despertar alguma função moral.

Constâncio Furtado, sobrinho do poeta Pedro Alves Furtado, que publicou obra de versos telúricos de exaltação a Barras do Marathaoan, infelizmente esquecida ou ignorada pelas gerações adultas, e absolutamente desconhecida pelos conterrâneos mais jovens, revela uma vocação que endossa, pelo estilo de literatura que produz, as tradições da cidade natal. Nesse quesito, o gênero que cultiva enseja o bairrismo bem característico dos barrenses, que se excedem, ingênua ou conscientemente, como poucos piauienses, em louvar as belezas naturais, a paisagem e mesmo a história antiga do lugar em que nasceram. Na literatura produzida por barrenses, narrativas com essa feição foram habilmente produzidas também pelo folclorista Bilé Carvalho, de saudosa memória, e pelo historiador e cronista Antenor Rêgo Filho, autor de obra ímpar no gênero,  “Jacurutu”.

Constâncio Furtado foge do romantismo para tocar nas feridas da condição humana, produzindo – com propósito e projeto literário claro e consciente - contos de feição popular, assinalados por tom de denúncia social. Em seus contos, os leitores se esbarrarão com a perplexidade das injustiças sociais e da desigualdade, com a surpreendente capacidade de comunicação espontânea do camponês, com a inesperada reação resignada do homem da roça, enfim, com o jeito de ser e viver dos que, verdadeiramente, pela sua força produtiva foram quase que exclusivamente o motor principal da economia das comunidades piauienses até bem pouco tempo.

Quem mergulhar nas páginas deste livro não sairá desta leitura sem rir e chorar, aplaudir e lamentar, mas principalmente sem reviver um tempo que é o de sempre – o tempo do sonho e das descobertas. É um livro para aqueles  que desejam  viver, pela memória, a essência das comunidades rurais. Um livro, também, para os que – a despeito de qualquer condição ideológica  -  amam Barras; livro para guardar no coração.

(*) Dílson Lages Monteiro é poeta, romancista e professor.