ESTAMOS MESMO EM PLENO GOZO DEMOCRÁTICO NO PAÍS ?
Por Cunha e Silva Filho Em: 22/04/2024, às 14H29
Estamos mesmo em pleno gozo da democracia no país?
Cunha e Silva Filho
(Da Academia Brasileiraode Filologia- - ABRAFIL )
A censura à obra de Arte literária está dando sinais de perigosa atitude de intolerância com obras ficcionais de autores brasileiros. Foi reaberto o debate, iniciado em 2010, sobre a censura a uma obra de Monteiro Lobato (1882-1948) de título Caçadas de Pedrinho, editada nos idos de 1933.
A polêmica se originou em razão de que a obra faria parte de um grupo de livros a serem distribuídos pelo MEC às escolas públicas. Alguém ligado a uma instituição de defesa da igualdade de negros e de combate contra o preconceito racista interferiu, junto ao MEC, para que o livro de Lobato fosse impugnando, já que, na visão dessa pessoa, a narrativa de Lobato continhas referências negativas que a comprometiam como obra racista.
O imbróglio já passou por dois pareceres do Conselho Nacional de Educação e encaminhados ao MEC. Além disso, foi objeto de dois processos movidos junto ao Supremo Tribunal Federal. Só está aguardando agora uma audiência de conciliação com o ministro Luiz Fux para terça-feira, da próxima semana.
A grande questão que abre agora, a partir do resultado dessa reunião, é a dúvida do que será estabelecido pela Justiça no tocante ao que possa vir a se caracterizar como uma forma de censura ou proibição, com a possibilidade de o livro de Lobato ser distribuído com ressalvas de teor de natureza censória., i.e., permitir a distribuição pelo MEC mas tendo como condição prévia , segundo diz a reportagem hoje, publicada no caderno Prosa,& Verso de O Globo. “promover a capacitação de professores a fim de sistematizar a abordagem ..” pelos docentes da questão do preconceito contra negros na educação básica.
Ora, reduzir a complexidade interpretativa de uma obra a uma abordagem imposta e didaticamente unificadora quanto à sua ideologia, a meu ver, se constitui em grave retrocesso da liberdade de pensamento e de expressão criativa de um autor. Este é o busílis, correspondente à expressão inglesa “That’s the rub” da questão que cumpre ser discutido sem os interditos do poder público.
Por conseguinte, obscurantista e cerceadora da criatividade de um escritor passa a ser a denúncia feita pelo Sr. Antônio Gomes Costa Neto, segundo a reportagem de Mariana Moreira, técnico em gestão educacional. A denúncia, formada de citação de passagens da obra lobatiana, foi encaminhada à ouvidoria da Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (Sppir). Na visão desprovida de conhecimentos no campo da narratividade e do que sejam os protocolos que norteiam a composição de uma obra de imaginação, o mencionado técnico alega que Monteiro Lobato promove o preconceito racial a partir do tratamento que o escritor dá a personagens como a tia Anastácia.
Ora, o técnico, naturalmente como lhe é inerente à função, se atém à literalidade (não confundir com “literariedade,” “desfamiliarização”, ou “ostranenie”, ou ainda “estranhamento”, “desautomatização, ” da leitura horizontal, própria da comunicação entre remetente e leitor. (Ver GRAY, Martin. A dictionary of literary terms.Essex, England: Longman, York Press, 3rd impression, 1994, respectivamente, p.83, 206 161), relativos aos conceitos formalistas russos.De resto m essa concepção de “estranhamento”, para ficar apenas num dos sinônimos terminológicos do formalismo russo, já remonta a autores ingleses como os poeta William Worsworth (1770-1870) no seu “prefácio à obra Lyrical Ballads ((1800)_ e ao poeta Percy Bisshe Shelley (1792-1822), na obra In defence of poetry (1840). Ver GAY, Martin, idem, ibidem.
Os termos citados acima pertencem a concepções teóricas dos formalistas russos. A leitura do técnico relativa à narrativa de Lobato não se sustenta. Não tendo, por conseguinte, nenhuma base crítico-teórica.
Destarte, provavelmente até por desconhecimento, comete um ato falho, dando ensejo a que o associemos aos tempos sombrios da ditadura militar-civil, conforme ele define a questão dos horrores daquilo que ele a chama a concepção dele de golpe militar, o qual impediu a sucessão de João Goulart (1919-1976)) à Presidência da República através do que ele denomina golpe contra o agora denominado e decantado Estado Democrático de Direito.
Em tempos bem recuados, houve ou uma fase da História de uma espécie de Inquisição em que muito livros listados pelo “Índex,” tenebroso tribunal romano do século XVI, que, em obediência a um cânon do Concílio de Trento, tinha o encargo de analisar obras que lhe eram encaminhadas pelo poder eclesiástico para aprovação (“Nihil obstat”) ou para a sua proibição. A expressão Nihil obstat já dava sinal em publicações dos irmãs maristas desde a década dos anos 1920.
O Brasil, que já dá grandes passos para ser um país maduro não pode retroceder em práticas terroristas e totalitárias dos tempos da Revolução cultural chinesa e dos Gulags comunistas. A obra de arte literária, e aqui estou, com todas as letras, incluindo Monteiro Lobato, é um produto construído pela linguagem, tendo seu mundo próprio, que não pode ser confundida com a factualidade da existência.
Sua base é a mímesis, ou seja, uma possibilidade de construção, sob “deformação” da realidade empírica, ou referencial, de vidas e de realidades sociais respeitando procedimentos técnicos próprios parecidos (mera coincidência) ou não com a chamada realidade empírica, mas que, conforme preceitua Aristóteles, não copia a vida tal qual é dentro de nossas percepções, porém “inventa” vidas, presidida pela imaginação ou imaginário, criados literariamente graças à capacidade que um autor (artista em diversas áreas culturais, mas principalmente literárias), tem para dar vida a “figuras de papel”(Roland Barthes) através de uma linguagem desviada da linguagem comunicativa, oral ou escrita.
No momento em que vida se fecha como referencialidades e diferenças ideológicas, a ficção passa a existir por si própria, graças à linguagem própria do gênero literário. O mesmo se pode afirmar, segundo já afirmei atrás, das artes em geral. A censura é do domínio da realidade pálida e cinza. A ficção, a poesia, o drama, o teatro a telenovelas ,o cinema são criações do espírito artístico, da capacidade potencial de indivíduos dotados de talento para explorarem mundos invisíveis ou mundos do imaginário o de inventar “realidades” que emocionam (catarse) e o fazem tanto em maior potência do que na vida pura e simples do cotidiano estéril.
Segundo um estudioso da literatura infantil, Ilan Brenman, autor de A condenação de Emília: o politicamente correto na literatura infantil (Aletria) citado na reportagem, o que está acontecendo com Lobato poderia abrir um precedente perigoso e preconceituoso para que obras de outros autores brasileiros, como Aluísio de Azevedo (1857-1913), Júlio Ribeiro (1845-1890) e Castro Alves (1847-1871), entre outros. Daqui a pouco, serão Graciliano Ramos(1892-1953), Jorge Amado (1912-2001).
Uma vez, quiseram censurar a fala de um personagem( !) de uma obra de Darcy Ribeiro(). Tal fato, embora de modo diferente, já está ocorrendo, conforme relata em breve artigo de Suzana Velasco, na mesma página do caderno Prosa. Somos informados de que o escritor Dalton Trevisan teve um livro seu, Violetas e pavões (Record, 2009) retirado da relação de obras que fariam parte do concurso de seleção do Colégio de Aplicação da Universidade Federal de Viçosa (UFV).
A alegação de tal retirada se deve a reclamações de pais e professores (sic!) de escolas e de cursinhos preparatórios para ingresso naquela instituição federal. Não sabia que a esta altura do campeonato, a família brasileira e educadores estejam dando demonstração de moralismo anacrônico e de hipocrisia social. Sabemos em que direção dever-se-ia dirigir as nossas reivindicações contra a atual imoralidade galopante, o hedonismo barato e banalizado mostrados em séries de certos devastadores de festivais de filmes violentos mostrados tanto em programas embrutecedores que antes estiolam ou deformam as mentes de pessoas mal orientadas no plano familiar, na tevê brasileira (tipo Big Brother et caterva) quanto nas chamada novelas de nenhuma qualidade, nas quais a ética e os chamados “bons costumes” burgueses ou da classe média sob o lema d um nacionalismo maquiado da “Família, Pátria e Liberdade” que há muito viraram formas de posições muito conservadoras sobejamente exibidas os em todos os cantos do país principalmente quando o elitismo econômico-político-ideológico vitorianamente hipócrita assume o seu papel de se manter incólume e se eternizar e lutar, com unhas e dentes, contra forças de cunho social-democrata,
O conservadorismo, instrumento drástico controlador de qualquer tentativa de ser vítima dos grupos, na realidade, progressistas, tudo faz para que o círculo vicioso das hierarquias consolidadas não se estratifiquem em camadas sociais que possam perder as já consolidadas prerrogativas e as regalias faraônicas da imutabilidade de mobilidade na pirâmide social, ou seja, passagem de uma classe social a um outra mais elevada (quebra da assimetria de nível social (ver Eduardo Portella) que o poder econômico-financeiro da mesma forma não crie possiblidade ou brechas de aludida ascensão na pirâmide social.
Onde estão os processos encaminhados aos tribunais de Justiça do país para tanta bandalheira, corrupção, hedonismo e “malfeitos” de nossos políticos e homens públicos? Qual vai ser o desfecho dos condenados do Mensalão, ou seja, quem irá mesmo para a cadeia sem as brechas e subterfúgios de amplos e recorrentes recursos legais, por seus crimes contra o Erário Público?
Jamais achei correta uma lei brasileira que decreta, que impõe de cima pra baixo, o crime do preconceito racial e, neste ponto discordo de uma velha crônica de Rachel de Queiroz (1910-2003), ao ficar emocionada no exterior quando alguém, dirigindo-se a ela, elogiava o país que criara uma lei contra o preconceito racial. O estrangeiro se referia à lei Afonso Arinos.
O combate ao preconceito racial – que é um sentimento abominável - deveria ter sido uma conquista natural na cultura brasileira, nascido de um combate constante na formação e educação de nosso povo, pelo menos num combate, sem trégua e de forma pacífica e sem derramamento de sangue, a partir da queda do Império no país e numa demonstração inequívoca, servindo como uma lição sincera, espontânea, sem hipocrisia, destinada a vencê-lo, como disse, através da mudança de mentalidade de um povo, do resgate do elemento negro pela via de condições de melhoria na saúde, na escola, nos aspectos éticos e no respeito às diferenças de cor, de nível social e de igualdade de oportunidades no emprego, na universidade e no direito de alguém poder assumir qualquer função sem os crônicos reflexos oriundos do nosso passado escravagista.
A verdadeira lei em defesa dos negros , sem laivos coercitivos, ou interditos, seria a que parte do interior. de uma verdadeira mudança de mentalidade do ser humano, da compreensão lúcida de que a pigmentação diferente nada comprova qualquer atitude irracional racista ou superioridade de arianos de comportamento neonazista, o que, se praticada, levar-nos-ia a novas formas de humilhação e preconceitos hediondos contra os povos negro, quer no país quer no exterior.
Acato, sim, a lei contra o preconceito, mas, no íntimo, sei que ela não passou de uma imposição, de algo artificial, por vezes mais provocador ou forte estímulo de racismo do que de harmonia entre brancos, pretos e mestiços. A harmonia entre pretos e brancos, que deveria existir, esconde, pela hipocrisia, o racismo que deve ser extirpado na consciência e dignidade da sociedade brasileira. Enquanto houver hipocrisia, convencionalismo legal, o estigma persistirá na nossa vida social.