Está certo porque sou doutor
Em: 06/01/2005, às 22H00
Especial para o Entre-textos
Nesses diversos congressos, seminários e simpósios que tenho participado pelo país, observei alguns comportamentos muito curiosos de determinada estirpe de intelectual acadêmico. Evidentemente, anotei algumas peculiaridades para compor um personagem encantador.
Diploma de 1º grau, 2º grau, graduação, pós-graduação, mestrado, doutorado, PhD e upa, upa, lá vem o Prof. Dr.! Ele não vem sozinho. Carrega consigo uma maletinha onde guarda sua coleção de diplomas para o caso de emergência: nunca se sabe quando precisará de um. Prudência e uma citação qualquer de Wittgenstein não fazem mal a ninguém.
O Prof. Dr. detesta conversar com pessoas que se recusam a ficar imediatamente fascinadas com seus comentários. Considera estúpido qualquer indivíduo incapaz de perceber que, por trás de seu bom dia, há anos e anos de estudo. Acha indecente colegas que, em sua presença, tratam de assuntos que não dizem respeito à sua tese. Um desperdício de tempo inadmissível para um PhD como ele.
Irrita-se profundamente quando uma balconista, um taxista ou um garçom dirige-lhe qualquer comentário, ou mesmo uma pergunta. Ouvir a voz de pessoas estúpidas pode intoxicar sua consciência, da mesma forma que comida estragada intoxicaria seu organismo. E sem um diploma, como o sujeito vai provar que não é um deficiente mental?
Porém, o Prof. Dr. não demonstra mau-humor, por entender que todos os seres vivos merecem consideração. Por isso, desenvolveu uma técnica pantomímica que simula expressão facial de intenso interesse em qualquer circunstância. Enquanto o ignorante fala, ele procura dispersar o pensamento, ou direcioná-lo para a reflexão de conceitos abstratos. Só fica atento na movimentação da boca do sujeito. Quando eventualmente o intelectual se distrai de suas abstrações e se vê diante a ameaça de prestar a atenção ao interlocutor boçal, interrompe com um meio-sorriso, diz "muito bem" ou "que ótimo!", finge que o celular vibrou e escapole daquela situação em contorções impossíveis. Sofre náuseas, labirintite, falta de ar, e só melhora quando repete para si mesmo: razão, consciência e hermenêutica, sou Prof. Dr.; razão, consciência e hermenêutica, sou Prof. Dr.!
Na verdade, o Prof. Dr. tem até alguma simpatia pelos raros iletrados que se põem a admirá-lo; porém, nunca dirige mais do que duas ou três palavras a eles, pois sabe que não vão entender mesmo. Quando ouve uma pergunta, desconversa dizendo: "é isso mesmo". Depois sai de fininho.
O Prof. Dr. invariavelmente se aborrece quando participa de simpósios, pois sempre aparece um retrógrado que contesta suas afirmações incontestáveis, especialmente aquelas baseadas nos dogmas da nova ciência. Mas ele não se intimida. Acaricia sua pasta de diplomas e, quando se sente encurralado no meio da argumentação, fuzila: "escute rapaz, isso que você diz é ridículo, você está errado, pois sou Dr!" Com um argumento desses, de fato, encerra-se a discussão.
O Prof. Dr. tem várias cartas na manga para vencer pelejas acadêmicas. Quando alguém expõe um assunto que ele não domina, o Prof. Dr. diz que isso não tem a mínima relevância. Quando apontam nele falhas de raciocínio, O Prof. Dr. atribui a um pensador consagrado na bibliografia e exime-se da responsabilidade da argumentação. Quando percebe que o interlocutor está prestes a fazer uma conclusão perspicaz, o Prof. Dr. interrompe bruscamente, expõe objeções fictícias, faz rodeio e conclui, triunfante, exatamente aquilo que o interlocutor estava prestes a concluir.
O Prof. Dr. esforça-se de forma sobre-humana para exibir-se em sociedade como um ser humano igual a qualquer um. Treina no espelho um olhar que pareça, ao mesmo tempo, cúmplice e superior, sincero e blasé, atento e descontraído. Cultiva uma extravagância inofensiva porque entende que é de bom-tom ter estilo. Amante da sociologia e da antropologia, idealiza e diz amar, com alma terna, a ingenuidade da sabedoria popular. Não perde a oportunidade de demostrar afeto aos iletrados quando o tema é debatido na universidade. Amante da música, obriga-se a ouvir os clássicos por pelo menos vinte minutos na semana. Quando falha, na semana seguinte ouve quarenta minutos.
Admite que ser doutor não significa, necessariamente, ser sempre racional: "é preciso sentir emoções de vez em quando". O Prof. Dr. não gosta muito de sexo, mas não se sente incomodado, porque Kant também não gostava. De qualquer maneira, faz para cumprir obrigações conjugais, quando necessário.
O Prof. Dr., evidentemente, odeia autodidatas. Tem uma ofensa na ponta da língua para esses atrevidos, citando Mário Quintana: "autodidata é um ignorante por conta própria". O Prof. Dr. prefere ser um pós-graduado, um mestre, um doutor.