Espelho de amor e verdade

[Chagas Botelho]

 

Cantava quando ficava diante espelho

                                                                      [objeto afetuoso e decorativo 

circundado de madeira antiga e envernizada. 

Parecia ter sido herdado.

Sim, agora me lembro:

na minha casa havia um espólio de cacarecos

 

Prendia-me por segundos, minutos, às vezes, horas

Ah o mundo degringolando, e eu ali, com imagem refletida

à cata de um sonho: cantar.   

O microfone - uma escova de pentear cabelo

Balançava o pescoço para cá e para lá  

 

Apenas doze anos, sem pelo algum

Nem nas axilas e nem na virilha

Imberbe e ainda sendo arremedo de cantor

Que sucesso teria na vida? 


 

“𝗩𝗼𝗰𝗲̂ 𝗲́ 𝗺𝗲𝘂 𝗰𝗲́𝘂, 

𝗲́ 𝗺𝗶𝗻𝗵𝗮 𝘃𝗶𝗱𝗮 𝗺𝗲𝘂 𝗽𝗲𝘀𝗼,

𝗺𝗶𝗻𝗵𝗮 𝗺𝗲𝗱𝗶𝗱𝗮 

𝗺𝗲𝘂 𝗰𝗼𝗳𝗿𝗶𝗻𝗵𝗼 𝗱𝗲 𝗮𝗺𝗼𝗿”

Cantava esses versos doloridos

Num desejo surdo-mudo

                                                        [ que gritava em meu peito

na ânsia de querer cantar 

 

O tempo passou como se passa um supersônico

e o sonho de ser cantor dobrou em outra esquina

tornou-se perecível 

Mas o espelho continua intacto e inerte na sala de estar 

                                                                                 [ agora, sem a condição pretérita 

a testemunhar a minha expressão embalsamada