Darcy França Denófrio - Poeta e Crítica de Literatura
Darcy França Denófrio - Poeta e Crítica de Literatura

DIEGO MENDES SOUSA:

ENTRE O APOLÍNEO E O DIONISÍACO

 

                                     Por Darcy França Denófrio

 

 

Lançando um olhar sobre a obra lírica de Diego Mendes Sousa, é possível perceber que ela se divide, até agora, em duas partes. Uma é representada por seus quatro primeiros livros, intitulados Divagações (2006), Metafísica do Encanto (2008), Fogo de Alabastro (2011) e Candelabro de Álamo (2012), obras em que se notam visíveis substratos da mitologia grega e também romana. É inegável que já em seu primeiro livro, Divagações, em “Impulsão”, o poeta já aponta claramente para os mitos, traço que se tornaria uma tônica de sua poesia. Aí afirma: “Daqui/ sairão/ todos/ os mitos./ Inventarei o não existente”. E é interessante observar que, mesmo nesta sua primeiríssima obra, o poeta já usa, à p. 104, a interjeição “evoé”, grito festivo com que as bacantes evocavam Dioniso – ou Baco para os romanos. 

Ainda nesse livro, o poeta falará também em Hidra, ou Hidras, Ícaro e ainda em mais uma ou outra figura da mitologia. Todavia a alusão a Dioniso nessa obra de estreia é especialmente importante, porque essa divindade está de modo muito presente e significativo nas quatro obras mencionadas.

Retornando a Divagações, primeiro degrau de sua lírica, percebemos que o poeta, quase um menino à época da publicação, já apresenta um dos elementos considerados indispensáveis por Aristóteles, ou seja, physis. Para o filósofo grego este elemento é a capacidade inata do poeta, a força criadora que não depende de qualquer ensino ou de qualquer saber. Mas a safra juvenil da produção literária de Diego Mendes Sousa revela também indícios daquilo que Aristóteles chama techne, ou seja, a cultura artística, o saber relativo à construção formal da obra, enfim, as regras que presidem à estrutura do poema.

Desta forma, mesmo sem o rigor verdadeiramente formal aristotélico, vamos encontrar, na obra de estreia de Diego, poemas visuais, poemas metalinguísticos, sem falar daqueles inspirados em partituras clássicas, como é o caso de um texto inspirado numa peça de Tchaikovsky. Além disso, há referências a autores respeitados da literatura universal, revelando o hábito do jovem poeta por leituras seletas, destacando-se a presença de Rilke. Em Fogo de Alabastro, no poema “Dois navegantes nas estrelas”, ele dialoga com Elegias de Duíno.  Não é sem razão que o poeta afirma ter nascido numa casa de livros.

Embora Divagações seja o livro de sua estreia precoce, ele aponta para muitas direções líricas que depois iriam amadurecer. Há fragmentos metafóricos de poemas prenhes de sumo existencial. No texto de abertura, “Adágio”, concebido com a liberdade de estrutura que a juventude permitia ao poeta ainda adolescente (teria entre 15 e 16 anos de idade), saltam duas estrofes que comprovam o que acima dissemos. À página 5, lê-se: “que a vida é um trocado/ de tropeços/ a ficar pânica no desvão”. Em seguida, à página 7, no mesmo poema de abertura, registra: “Tudo de uma vida/ digere/ em outras vidas”.

Dois anos depois, publica a obra Metafísica do Encanto, onde o poeta cresce sensivelmente. Aí ele dirá na seção “Os Incônditos do Encanto”, página 56, num poema que corre solto como uma disparada de Pégaso, este excerto profundamente existencial: “a vida é um desastre/ estrondoso/ de instantaneidade”.

Mas é ainda em Divagações que o poeta faz sete poemas tematizando a morte: “Chamado”, p. 35; “Na realidade sou assim”, p.39; “Dueto, p. 52; “Candelabro”, p. 57; “Entre mortos”, p. 61; “Busca”, p. 62; e “Vendo além”, p. 64. Podemos contabilizar ainda inúmeras vezes a palavra morte e cognatos, até mesmo no meio do discurso erótico, tanto nesta como em outras obras do autor. Até mesmo em Fogo de Alabastro, eminentemente o livro da amada, que redime o seu sofrimento de Dioniso despedaçado. O poeta começa com o poema “Visita”, onde a morte comparece no primeiro verso da primeira estrofe:

 

Trafega o susto da morte

a imagem da orfandade

 

A sombra de Tânatos que paira sobre obras de Diego, ainda tão jovem, se não aponta para duras perdas em sua infância, deve apontar para o receio de outras, como a possível morte da avó que o criou e que lhe é tão cara. Uma figura doce e amada em sua poesia, tal como se depreende dos comoventes versos a ela dedicados. Quanto a Tânatos, não é sem razão que se lê, como já se disse, no poema “Impulsão” da primeira obra de Diego. “Daqui/ sairão/ todos [...] os mitos”.

Eros e Tânatos, o amor e a morte, são presença constante na lírica de todos os tempos e também na de Diego Mendes Sousa. O primeiro exilará o segundo ao longo de sua obra completa, principalmente em razão do aparecimento de sua grande Musa. Na obra de estreia, no poema “Anúncio”, o poeta afirmava: “Estou à procura de uma musa”. E ele a encontra. Ela já aparece subentendida em Metafísica do Encanto, no poema “Abalo ao Anoitecer”, à p. 29, quando o poeta fala na “esmeralda de teus olhos”, esses olhos verdes que se tornam um verdadeiro símbolo, senão uma metonímia de Altair Marinho, a Musa com quem se casa.

Vejamos um excerto delicadamente erótico desse poema:

 

Teus enfeitiçados cabelos

teu eterno céu de cristal

que faz cair o crepúsculo

que clareia a esmeralda de teus olhos

e abre a carnosidade

de tua boca [...].

 

Diego Mendes Sousa cresce geometricamente de Divagações para Metafísica do Encanto e podemos insistir que há mesmo sobre a planta baixa de boa parte de sua obra um lastro mitológico considerável. Metafísica do Encanto, obra com que ganhou o Prêmio Nacional de Poesia Olegário Mariano da UBE-RJ, é dedicada a, pelo menos, quatro das nove musas da mitologia grega, não faltando Érato, musa da poesia romântica, e Calíope, musa da poesia épica. A obra abre-se com uma epígrafe em que se flagra um excerto da fala de Fausto, de Goethe. Comparecem nesta obra, além de nomes de luminares da literatura mundial, que o poeta conhece como poucos em sua idade, também os de musicistas e pintores de alto escalão, revelando milhas de leitura e de conhecimento de música clássica e erudita.

Metafísica do Encanto é o título que o poeta extrai de um fragmento de um longo poema, à página 77. Aqui, mais uma vez, ele demonstra seu vasto conhecimento de mitologia greco-romana, conhecimento exposto até mesmo na ilustração da capa desse livro. Estão presentes na obra, praticamente as nove musas da mitologia grega, filhas de Zeus e Mnemósine. Nas duas folhas de dedicatória, aparecem pelo menos quatro delas, entre as quais a da poesia lírica e a da poesia épica. Também são mencionadas, ao longo da obra, Vênus, Afrodite e outras figuras da mitologia, como é o caso de Pã e Ícaro. Esta obra lírica, que não deixa dúvidas quanto ao amadurecimento estético do poeta, apresenta versos mais conscientes, com lâminas líricas mais coesas e até mesmo mais contidas. Poderíamos dizer, versos mais apolíneos. Como exemplos, citaria “Sobras do crepúsculo” e “Serenata aos iludidos”, este último um poema que abre e se fecha em magnífica forma circular. Nele o primeiro e o último verso, depois de uma relativamente longa lâmina lírica de permeio, se completam, de forma aparentemente circular:

 

Amor não me deixa sofrer...

[...]

Amor não me deixa morrer

 

Como já dissemos, fica-nos, mais do que a impressão, a certeza de que sua musa Altair está ali insinuada, pela primeira vez, no poema “Abalo ao anoitecer”, em que o poeta fala da “esmeralda de teus olhos”. Esses olhos verdes, às vezes de forma reiterada, como se verá depois em Fogo de Alabastro – “Pupila de Farol/ verde, verde, verde” – não nos deixa enganar. São sempre os da verdadeira Musa de Diego. Olhos que o enfeitiçam ou o enfeitiçaram desde sempre.

De fato, grande parte da obra completa de Diego lembra-nos O nascimento da tragédia, de Nietzsche, trabalho em que o filósofo estabelece a distinção entre o apolíneo e o dionisíaco. Este filósofo considera-os como perspectivas opostas e complementares entre si. Como se sabe, Apolo é o deus da clareza, da harmonia e da ordem, enquanto Dionísio é o deus da exuberância, da desordem e da música. Dioniso, ou Baco, é o deus do vinho, da ebriedade, dos excessos, especialmente sexuais, e da natureza.  Essas duas forças que se complementam, segundo o filósofo, só foram separadas pela civilização. Para Nietzsche, a tragédia grega atingiu a sua perfeição na reconciliação da “embriaguez” e da forma, de Dioniso e de Apolo, e só começou a declinar quando, aos poucos, foi invadida pelo racionalismo, sob a influência “decadente” de Sócrates. Na poesia de Diego Mendes Sousa, o apolíneo e o dionisíaco são visivelmente complementares.

Ao se lançar uma visão macroscópica sobre as quatro primeiras obras de Diego Mendes Sousa, já não se tem dúvida: nelas existe um casamento visível entre o apolínio e o dionisíaco, embora ele até fale muito mais em Dioniso, porque frequentemente o encarne. Logo que li sua obra lírica completa, vi sob a sua planta-baixa, ou unindo as grandes articulações de suas obras, aquelas ideias de Nietzsche sobre a arte. Aliás, é este, segundo soube, um de seus filósofos prediletos. Portanto, sua obra não é apenas dionisíaca. Soube estabelecer, no crescendum de sua poesia, uma aliança fraterna entre Dioniso e Apolo. Mesmo quando não fala em mito.

Em 50 poemas escolhidos pelo autor, pudemos observar algo novo na lírica de Diego Mendes Sousa. Fragmentos de “Um Estro Temporão”, última seção de Metafísica do Encanto, pág. 65, são reorganizados e acomodados com mais rigor, aparecendo somente agora em pequenas seções, marcados com algarismos romanos. Parece um retorno à ordem, ao apolíneo, à complementaridade entre essas duas forças antagônicas, que não devem se excluir. O fenômeno do dionisíaco, para Nietzsche supunha “um dizer sim sem reserva, mesmo ao sofrimento, mesmo à culpa, mesmo a tudo o que é problemático e estranho na existência”. Para ele, “nada do que é deve ser excluído”. E o poeta Diego não exclui. Vejamos apenas um fragmento de “Um Estro Temporão”, de Metafísica do Encanto: “Que fogosas putas/ depois do sexo/ laceram a vagina/ com vinagre e limão/ e dentro da solidão/ urinam-se de falos”.

Apolo, no plano da expressão, é, em Diego, a busca do belo, da verdadeira dicção poética, que ele alcança por excelência na bela obra Fogo de Alabastro. Basta lembrar o poema “Evoco-te, Figo Maduro, para não morrer na saudade imensa”, título homônimo de uma estrofe do poema que mereceu tradução da professora, tradutora, ensaísta e poetisa Helena Ferreira. Eis um fragmento do poema:

 

Alabastrino raio

que principia

a lírica instância

da Roma

 

E acenou aos deuses

a fúria da brancura

 

Pele de jasmim

fêmea atracada no porto incendiário

entre a ternura e o afago

[...]

 

Dioniso é o desesperado amor do poeta, seu coração de vinhas que alcança o seu máximo lírico também em Fogo de Alabastro, o livro por excelência de sua musa Altair. Essa que o fez reviver e lhe deu a possibilidade de dizer, no poema “O Vinho do Amor”, à p. 19, de Candelabro de Álamo: “Dionísio está vivo!”. A divindade encarna o poeta, e o poema termina reiterando a oração por três vezes e culmina com a ideia de que Dioniso já foi destroçado pelos Titãs (os que a vida lhe reservou) e renasceu, como se depreende dessa transcrição que fecha o poema:

 

“Pois Dionísio está vivo! Está vivo! Está vivo!

(e vai ecoando redivivo)”

 

Dos quatro primeiros livros publicados, Fogo de Alabastro é o mais apolíneo no que se refere à perfeição da forma, e o mais dionisíaco no sentido da desesperada entrega de seu amor à musa, como se lê em “Utopia”:

 

 

Para onde

os teus olhos verdes

apontam

é a rota

 

A outra parte da obra poética de Diego Mendes Sousa, é representada por livros que formam uma verdadeira unidade: a busca do poeta ou do “eu lírico” por suas raízes. São eles: O Viajor de Altaíba (2013), obra ainda inédita, chamada o livro do exílio voluntário pelo poeta, onde sua alma sangra; Alma Litorânea, onde se flagra a plenitude da terra natal reencontrada, obra publicada em 2014, depois de seu retorno de Maringá-Paraná, cidade onde se “exilou” por uns tempos; Gravidade das Xananas (2015), pequeno grande livro com força filosófica de visões a partir de uma genuína flor da Parnaíba, sua realidade natal. Os poemas levam o título de Ensinamentos: sobre a solidão, a tristeza, a felicidade, a miséria e tantos outros sentimentos que assolam a alma humana. São “ensinamentos” ou reflexões esses poemas dedicados a amigos, apontando verdades extraídas dessa flor.

 Essa trilogia que forma uma unidade está profundamente imbricada a Parnaíba, o torrão natal muito amado pelo poeta. Essa trilogia inclui, de modo subjacente, a sua história, a de sua gente, a natureza, com referências à fauna e a flora, enfim, são obras em que Parnaíba,  cidade da costa norte do Piauí, que é o seu mundo encantado, lhe serve de inspiração. Mas não nos esqueçamos de que um fundo existencial, senão universal, marcará sempre presença em sua obra completa. Mais precisamente, constitui sua temática todos os sentimentos que fazem a essência do ser humano e que poderão marcá-lo em diferentes etapas da vida: a solidão, a tristeza, a felicidade, a miséria, a fortuna, a velhice, a juventude, a vida, a morte, a melancolia, a dor, o amor, enfim, matizes até mesmo antitéticos que colorem a vida humana em sua trajetória.

Vejamos alguns detalhes da trilogia de Diego Mendes Sousa, ou dos livros que o ligam à sua terra natal. O primeiro deles, O Viajor de Altaíba, é uma criação toponímica, cidade imaginária do poeta, mas bem real, porque é a sua bela Parnaíba, que estabelece um contraponto com Alma Litorânea, obra que tematiza o retorno tão desejado pelo poeta ao seu recanto natal, após O Viajor de Altaíba. Por razões que não sabemos explicar, o livro de poemas Alma Litorânea foi concebido e publicado em 2014, quando da volta do poeta a Altaíba (leia-se Parnaíba). Foi escrito, portanto, posterirormente a O Viajor de Altaíba, concebido em 2013, obra que se publicará somente agora, e que tem sido chamada “o livro do exílio”. O autor anota em rodapé, na folha de rosto dos originais: “Este livro foi escrito em um exílio voluntário, longe da minha alma litorânea (Parnaíba - PI) durante o ano de 2013”. O fato de ser voluntário, não alivia a carga do exílio.

Na verdade, temos uma trilogia que forma uma unidade: O Viajor de Altaíba, obra inédita; Alma Litorânea, que abriga a plenitude da terra natal imaginária, publicado depois de seu retorno de Maringá, cidade onde se “exilou” por uns tempos; finalmente a Gravidade das Xananas, uma incursão lírico-filosófica por temas a partir de uma flor natural da Parnaíba, berço do autor. Este livro que é pequeno em extensão, mas de visível importância na obra do autor, veio a lume em 2015. Embora a palavra xanana esteja dicionarizada também como pessoa com hábito de ter suas ações, atos e atitudes frente à vida, baseados na verdade absoluta, na praticidade das soluções, de forma que seja sempre o mais objetivo e simples possível, o autor chegou a me revelar que não utiliza a palavra apenas para significar uma flor silvestre que cobre de beleza o chão da Parnaíba todas as manhãs, e que isso se acentua com as chuvas de dezembro a maio. Não, ele a utiliza em todos os sentidos catalogados, inclusive os dúbios, mesmo o erotismo velado.

O título do ainda inédito O Viajor de Altaíba comporta uma invenção lírica, como se disse, ou melhor, uma montagem lírica formada de duas palavras: Altair, a grande musa do poeta, a sua amada, e Parnaíba, o torrão natal do poeta. Portanto um topônimo poético de altíssima significação, porque ele se converte também no poeta, que se imbrica à sua musa.  Altaíba, assim como Pasárgada de Manuel Bandeira, remete ao extremo oriente, quem sabe ao edênico campo dos persas. E sabemos que no extremo oriente, existe para os viajores o Al Taiba, edênico a seu modo.

Este é um livro cujo teor biográfico não pode ser desprezado. A Teoria da Literatura estabelece distinção entre “eu lírico” e o “eu biográfico”. Não são, de fato, a mesma coisa. Mas jamais duvidei de que esses dois universais estivessem profundamente imbricados, o segundo dissimulado no primeiro, por meio da persona (ou máscara) lírica. Eles comunicam-se, frequentemente, por osmose lírica. É inegável que o poema se vincula ao universo psicofísico e sócio-cultural de seu autor. Apenas não se subordina a eles. Reconheço que um “eu” puramente biográfico seja incompetência poética do autor. Mas aplaudo Diego Mendes Sousa quando ouço esse poeta de primeira grandeza declarar numa entrevista em rede nacional: “Meus poemas são testemunhos de mim mesmo”. Não há como negar esse fato. Assim como não se pode negar a ideia de Staiger de que quanto mais lírico o poema, menor será a distância entre o eu e o mundo, que se fundem e confundem. Não haverá distanciamento e, sim, a fusão entre sujeito e objeto, o eu e o mundo.

O Viajor de Altaíba é um livro que revela sofrimento. Há um poema comovente, quase uma elegia, na seção Solilóquio de um rato, que começa ex-abrupto: “Foram embora os meus livros...”. Logo no início, aparece uma metáfora bem concebida, evocando a devastação, a queima da grande Biblioteca de Alexandria. Não sem razão, pois o poema fala da perda dos livros do poeta Diego, livros que são marcos visíveis de sua erudição e história pessoal: Rainer Maria Rilke, Goethe, Hölderlin entre tantos outros que faziam parte de sua biblioteca, recanto de um mundo que o poeta criou para si mesmo. De fato, ao sair do Paraná, o poeta teve de vender a sua ampla biblioteca, composta de mais de seis mil exemplares, para diversos sebos da cidade de Maringá. Era inviável repatriá-los à sua terra natal.

Nota-se o sofrimento a partir do primeiro poema, “O viajor”:

 

 

 

Coloquei a bagagem no dorso de meu destino

Disseram-me: Não vá!

Eu fui armado

na fé

de viajor de sonhos

e passageiro caminhante e andarilho

nos trilhos de meu trem descompensado

[...]

 

Neste poema aparecem versos que denotam desolação e tristeza. Vejamos:

 

Na rota da vida sombria:

a viagem de solitários traços!

 

          E sobretudo o fecho:

 

Meu misterioso passar

com os pés no escuro

 

Contraditoriamente, o poema seguinte, denominado “Altaíba”, é todo uma declaração de amor à sua musa Altair. Aí o poeta se transforma em um “viajor/ do mais amar. Este é, na verdade um livro de dor e de amor. Mas tudo fica subentendido, como convém à verdadeira poesia. O poeta sabe disto e assim se exprime de forma metalinguística:

 

A esperança da poesia

é ser noturna.

 

A dor se revela em muitos momentos dessa obra. O poema “Exílio”, assim se inicia, numa alusão à saída de sua terra:

 

Quando deixei os ares

da terra santa

resolvi andar

em sina cigana

para chegar

no choro dos guarás.

 

Aqui Diego faz menção às belíssimas aves litorâneas (que choram com o poeta ou por ele?) próprias de sua terra, no Delta do Parnaíba, e, coincidentemente, também do Paraná. Não nos esqueçamos de que ele se “exilou” em Maringá. Termina o poema com esta estrofe: “Vou / no silêncio / do exílio”. 

A alternância entre dor e manifestação de amor profundo, aparece, entre outros, no belíssimo poema anafórico propositadamente chamado “O intervalo” (de sofrimento?), dedicado à sua amada. São seis estrofes, começadas com o mesmo verso: “Porque amei os teus olhos verdes”. Mas Dioniso despedaçado, em “vinhos e fugas” não deixa de aparecer no poema “O zíngaro”, da mesma obra.

Diego desenvolve agora Tinteiros da Casa e do Coração Desertos e, igualmente, Coração Costeiro, inéditos exclusivos para sua Poesia Reunida, a sair. Pelos poucos poemas que conheço, serão livros maduros, com pendor para o existencial. Aliás, maturidade que Diego Mendes Sousa já alcançou há tempo. Um advogado que se dedica à poesia brasileira em tempo integral, que a divulga em seu blog literário para o Brasil inteiro, que penetra nos arcanos do que melhor aqui se produz ou já se produziu e vai exercitando também o papel de crítico literário, só poderia mesmo crescer e alcançar um timbre próprio para sua poesia, que já não pode deixar de ser reconhecida. E com a marca do talento de quem já domina as técnicas da lírica contemporânea ou os traços estilísticos do poema lírico, emblemáticos dos melhores textos literários.

Quanto mais amadurece, mais Diego Mendes Sousa deixa claro, em sua obra, aquela convivência pacífica entre o apolíneo e o dionisíaco. O primeiro, na busca incessante da perfeição da forma literária. O segundo, naquele dizer sem reserva a tudo quanto é problemático e estranho na existência e, principalmente, na desesperada entrega de seu amor.

 

 

 

 

[...] Coração dos mangues

quebra nas praias

de um deserto de dunas

 

(finuras de Deus

às calhas azuis

dos meus paus)

 

De náufrago

à terra natalícia

onde perdi o marejar

dos olhos vagidos

de dor

mirada de crustáceo

à alerta

no afluxo das marés

 

 

                                               Goiânia, fevereiro de 2016

 

 

DARCY FRANÇA DENÓFRIO (Goiás, nascida em 1936), uma das maiores intellegentia da crítica literária brasileira. Estudiosa das obras completas de Cora Coralina, Fernando Py, Gilberto Mendonça Teles e Afonso Félix de Sousa. Também exímia poeta com imagética lírica metafísica, autora de Amaro Mar (1988) e Uma Voz e o Silêncio (2014). Recebeu o Prêmio Jorge de Lima da Academia Carioca de Letras, por Ínvio Lado, em 2000.