ANA MARIA BERNARDELLI
ANA MARIA BERNARDELLI

EU ME PROCURO

 

 

 

Eu me procuro no ventre da vida

nas águas insones, na minha cidade,

Eu me procuro na sorte parida,

na floração do amor de verdade.

 

Eu me procuro no redemoinho,

no sol da manhã, na alvorada,

Eu me procuro no berço, no ninho,

na boca da noite, na madrugada.

 

Eu me procuro no trem da história

que parte de mim rumo ao além,

Eu me procuro nos vagões da memória,

paisagens que são estações do bem.

 

Eu me procuro na casa invadida,

nas recordações da minha infância,

Eu me procuro na alma escondida,

no medo, no espelho, na distância.

 

Eu me procuro no silêncio do grito,

no pesadelo, no sonho sonhado,

Eu me procuro esperança e conflito,

no tempo de Deus, perdido e achado.

 

 

Poema de Diego Mendes Sousa

 

Extraído do livro de poemas intitulado "Agulha de coser o espanto" (Instituto Amostragem, 2023)

 

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A BUSCA EXISTENCIAL EM DIEGO MENDES SOUSA

 

ENSAIO DE ANA MARIA BERNARDELLI

 

 

O poema "Eu me procuro", de Diego Mendes Sousa, oferece uma imersão no processo de autoconhecimento e na busca existencial. A estrutura em quartetos rimados, somada à musicalidade fluida, evoca uma trajetória introspectiva que, por meio de metáforas e imagens ricas, amplia a reflexão sobre a existência. A análise acadêmica desse poema pode ser feita a partir de alguns eixos principais: figuras de linguagem, recursos estilísticos, intertextualidades e a profundidade temática.

Composto em redondilhas maiores (versos heptassílabos), o poema apresenta uma regularidade formal que contribui para a musicalidade da leitura. O esquema de rimas alternadas (ABAB) em cada estrofe reforça essa sensação de equilíbrio, mas contrasta com o movimento interno de "procura" e "desencontro" retratado na temática. Essa dissonância entre forma e conteúdo sugere uma reflexão mais profunda sobre a dificuldade de alcançar o "eu" em meio às contingências da vida.

As Figuras de Linguagem estão apropriadamdnte inseridas.

Metáforas: O poema é carregado de metáforas que transmitem a angústia e a multiplicidade da procura do eu. A "sorte parida" (v. 3) é uma metáfora da origem, um nascimento que já traz em si o destino. "Trem da história" (v. 9) e "vagões da memória" (v. 11) são imagens que resgatam o tempo e a memória como forças que moldam a identidade, sugerindo a vida como uma jornada com estações e pausas.

Antíteses: A busca pelo eu também é marcada por contradições que evidenciam o conflito interno. As expressões "silêncio do grito" (v. 17) e "perdido e achado" (v. 20) são antitéticas, revelando um estado de tensão entre forças opostas, que caracteriza a luta pelo autoconhecimento. Essas oposições dialogam com a ideia de que o eu é composto por facetas contrastantes, muitas vezes irreconciliáveis.

Personificação: Ao atribuir características humanas ao "trem da história" e aos "vagões da memória", o poeta personifica essas entidades, tornando-as protagonistas no processo de busca identitária. Isso confere vitalidade ao tempo e à lembrança, como se fossem entidades vivas e atuantes no movimento de descoberta do sujeito.

Metonímia e Sinestesia: A "boca da noite" (v. 8) é uma metonímia que associa a ideia de noite ao seu início, seu limiar, mas também evoca uma sinestesia ao ligar um sentido tátil ao conceito temporal, intensificando a percepção sensorial do poema.

A busca pelo eu no poema remete a outras grandes obras da literatura que tratam do tema da introspecção e do desdobramento da identidade. O poema pode ser lido à luz de Fernando Pessoa, cuja obra é atravessada por essa constante procura do "eu" multifacetado e escorregadio. A busca de Diego Mendes Sousa se assemelha à de Pessoa, especialmente no uso de antíteses e metáforas para captar a complexidade do eu.

Há também ressonâncias com a tradição romântica, principalmente na forma como o sujeito lírico se projeta em elementos da natureza (a "floração do amor", o "sol da manhã", a "madrugada"). Esse diálogo com o Romantismo sugere que a identidade é formada não apenas internamente, mas também através da relação com o mundo natural e social.

O poema é profundamente existencialista. O eu lírico está em constante procura de si, mergulhado em uma espiral de autorreflexão. Ele se busca no tempo ("no trem da história", "no tempo de Deus"), nas experiências do passado e nos anseios futuros, mas o "eu" parece sempre escapar. Esse tema está associado à filosofia de Jean-Paul Sartre, onde a busca pela essência precede a existência, sugerindo que o ser humano está em um constante estado de vir-a-ser, sem nunca se estabilizar em uma identidade fixa.

A linguagem do poema é ao mesmo tempo simples e sofisticada. As imagens cotidianas (o "berço", o "ninho", o "sol da manhã") tornam a leitura acessível, enquanto a profundidade das metáforas e a organização da estrutura rimada revelam uma complexidade subjacente. A linguagem metafórica, como visto, é um dos pilares da construção do poema, criando um campo semântico em que a procura de si passa por elementos sensoriais, temporais e espirituais.

A última estrofe sintetiza essa busca como um conflito entre esperança e medo, entre a percepção do eu no "espelho" e sua distância existencial. A referência ao "tempo de Deus" aponta para uma dimensão transcendental, em que o sujeito tenta encontrar respostas além do material, mas o "tempo perdido e achado" indica que a descoberta do eu é, ao mesmo tempo, uma perda constante.

"Eu me procuro" é, enfim, um poema que explora, por meio de uma linguagem rica e cheia de contrastes, a natureza fragmentada e múltipla da identidade humana. Com influências que variam do Romantismo ao Existencialismo, Diego Mendes Sousa constrói uma jornada introspectiva que é, ao mesmo tempo, pessoal e universal. Através de metáforas, antíteses e intertextualidades, o poema nos convida a refletir sobre a complexidade da procura pelo eu, uma busca que se desdobra em camadas de significados e que nunca encontra um fim definitivo.

 

Ana Maria Bernardelli é professora, poeta, escritora, revisora, ensaísta e musicista. Possui obra literária solo e organização de coletâneas tanto infantis como para adultos. É membro efetivo da Academia Sul-Mato-Grossense de Letras, ocupando a Cadeira nº 27. É também membro da Comissão Sul-Mato-Grossense de Folclore e do Pen Clube-MS. Especialista em Literatura Brasileira e Literatura e Língua Francesa pela Université de Nancy, França. Ministra assessoria de Produção Textual para professores e Concursos Públicos.