Em estado de graça

Por  Assis Brasil

Desde os tempos mais remotos, já era possível identificar a relação da Palavra, da Poesia com a santidade, com o sagrado. Entre os gregos, já se falava na origem divina da poesia. Os poetas eram chamados de vates, exatamente porque eram arrebatados por um delírio sagrado.

Aproximar o poético do sagrado não é novidade alguma entre os filósofos e críticos da cultura de todos os tempos. Um cantochão, a linguagem cantada em surdina: uma poética diante do inefável e do Eterno... Assim ocorre nos versos de Gel em chamas, a linguagem poética de Francigelda Ribeiro em estado de graça. Do primeiro livro, Estrada virgem, a esta coletânea de agora, o percurso da poetisa é tranqüilo em significação estética e inventividade ao nível da linguagem. A leitura de Gel em chamas, tanto para o crítico especializado quanto para o leitor comum, traz um elenco e um espectro de sugestão, quer do ponto de vista da imaginação criativa ou do bom gosto.


Um poeta brasileiro, pouco conhecido, Francisco Campos, escreveu algo que vai ao encontro do significado primeiro da poesia de Francigelda: “Todo poeta é contemporâneo do primeiro dia da criação. O que existe é apenas o barro maleável que o seu sopro anima, conforma e transfigura”. Pensamento que aponta para a inocência na qual o poeta emerge ao criar a sua linguagem pura, como no primeiro dia da criação. O poeta nos diz mais: “Se cada um de nós pudesse prolongar, pela vida a fora, um fio de sol do tecido de sonho de sua infância, todos seríamos poetas”.


Para criar uma linguagem cheia de ritmo, de cadências multicoloridas, para criar a música e visões apocalípticas, a poetisa Francigelda desce às primícias da poesia, à sua origem, para encontrar, no Mito, a significação maior de seus versos. E, para chegar lá, ela volta ao estado de graça da infância, para reencontrar o puro e o belo. Assim, sua linguagem poética atinge o trinômio, que é uno e harmônico: o místico, o erótico e o onírico – forças primevas da criação, uma dimensão do fascínio e da beatitude.


Não relegando a segundo plano os recursos formais e, conhecendo os mistérios do fazer poético, a poetisa alia tais recursos à sua sensibilidade emotiva. Francigelda elege a palavra – a palavra múltipla e colorida, que se harmoniza na criação e na criatura da metáfora. Sabendo, no entanto, que a palavra, per se – solitária – não tem carga poética, a escritora sai para as suas associações: matéria-prima da sua linguagem.


Não constitui inovação dizer que é primazia do poeta usar o poder mágico das palavras em livres e ricas associações para a consecução, também, de uma linguagem mágica. E esse estado de poesia não é racional, aspecto que leva muitos leitores a repudiarem a poesia, visto que envoltos na teia de um permanente e estéril racionalismo. Algo a que já remetia o filósofo Nicolas Berdiaev ao expressar o equívoco acarretado ao se pensar o conhecimento sempre racional, excluindo o conhecimento irracional, bem como quando o mesmo filósofo elucida que o primeiro princípio da poesia é o delírio e não a razão.


Francigelda sustenta e aprimora, a cada passo, o seu delírio poético na metáfora com o seu deslumbre inventivo. Os poetas – retomando certa passagem de Verlaine – são criaturas inspiradas e possessas. Tais termos podem ser utilizados para remeter ao lado mítico e erótico da poesia da escritora. Aliás, o espectro mítico, intrinsecamente relacionado com o Logos, emerge em multifário enleio:


Carinhos em devaneios / ávidos di(amantes) / olhos-águia ofegantes / impulsos libidinais / em buscas abissais / olhos de inverno / mulher crepúsculo do dia / lábios, bruma despindo / mãos insônia vestindo / arco-íris cobre / o casal no dobre / do querer que se faz / sono Ariadne-Teseu / exala floral / esfinge de secreto sabor / ponte de mãos, ciranda / sumo ritual de gradação / volúpias em golpes / quereres abrem flores / bocas desaguando rios /  Metade-Andrógino / desbraga in(censo)-atração / cascata febril da noite / no jardim além de si / do corpo que em vestígio / fez-se vasto exílio...


Eis o núcleo da linguagem poética de Francigelda. Embora as metáforas não tenham sido colhidas ao vôo do pássaro, pode-se sentir (no sensível) a inventividade pela associação de palavras, tal como se pode intuir (na impregnação lógica) o sentido do amplexo erótico no corpóreo das imagens sensuais. A linguagem se encontra com a sua imagística de origem: o barro e sopro-ânimo da vida, o que não permite fugir desta significação última da criação poética. Como destacou Susanne Langer, é criada, na poesia de sentido mais profundo, uma aparição composta e ordenada de uma experiência humana.


Experiência humana consagrando um fim sacral, como diria Heine. Enfim, a poesia de Francigelda Ribeiro distancia o leitor da trivialidade, despertando-o a partir do que reúne, no livro Gel em chamas, do Ser do místico, do erótico e do onírico.

Assis Brasil é romancista e crítico literário