Herasmo Braga
Herasmo Braga

Em busca da expressividade perdida em Proust

Herasmo Braga

Professor e Ensaísta.

 

O episódio mais comentado dos livros que compõem Em busca do tempo perdido de Marcel Proust, principalmente entre os não leitores da obra, é o de Madeleine. Faz-se uso contemplativo da narrativa sem evidenciar as inúmeras singularidades presentes da intriga e fazem-se profundas reflexões acerca das subjetividades dos indivíduos, as possibilidades de se perceber as relações entre o mundo ficcional e o que se depara diante do sujeito, as proezas da escrita, a criatividade formativa do enredo, são inúmeras as proposições. No momento, passa-se a dar destaque a aspectos referentes à expressividade da narrativa.

São apresentadas desde as primeiras inquietações do narrador Marcel até as angústias de viabilizar-se enquanto escritor. O auto-julgamento a atormentá-lo são as incertezas da sua capacidade de escrita, mas a escrita não de apenas fabular ou mesmo descrever situações e impressões íntimas e passá-las ao papel: “Parecia-me, então, que eu existia do mesmo modo que os outros homens, que envelheceria, que morreria como eles, e que, dentre eles, eu pertencia apenas ao número dos que não têm talento para escrever. E assim, desanimado, renunciava à literatura para sempre...”. A crítica regente em si era severa. Observa inapto de realizar-se na escrita na mesma equivalência sensitiva que o mundo oferecia. Ser escritor, para Proust, não era apenas ser dotado de habilidades com as palavras de maneira ornamentativa, com recheios marcados por uma variedade incomum de vocabulário. Ser escritor, para ele, era refletir no papel a intensa expressividade oferecida pelos quadros da vida que enriquecem não apenas o olhar, mas ilumina o ser.

Apesar das angústias e certas decepções que o faziam conscientizar-se de fato não ser ele tão apto para tamanho empreendimento, a vida lhe trazia de volta essa estranha necessidade, marcado como algo existencial para si: “A mágoa que eu sentia, enquanto ficava a sonhar sozinho, um pouco distante dos outros, me fazia sofrer tanto que meu espírito, para não mais senti-la, por si mesmo, numa espécie de inibição diante de dor, deixava inteiramente de pensar nos versos, nos romances, em um futuro poético com o qual a minha falta de talento me proibia de contar. Então, bem longe de todas essas preocupações literárias e em nada a ele relativos, eis que de repente um telhado, um reflexo de sol sobre uma pedra, o cheiro de um caminho, faziam-me parar por um prazer especial que me davam, e também porque tinham o aspecto de quem guarda, além do que eu via, algo que me convidavam a vir pegar e que, apesar de meus esforços, eu não conseguia descobrir. Como eu sentisse que aquilo se encontrava neles, ficava ali, imóvel, a contemplar, a respirar, a tentar ir, com o pensamento, para além da imagem ou aroma”. Esse tormento que o narrador enfrentava se devia à sua compreensão serena e por reconhecer que a produção literária não é apenas o trabalho vocabular ou manejo de significados oriundos das palavras. Essa busca da expressividade estava diretamente relacionada ao princípio da equivalência, para que aquela percepção singular e profunda fosse, por meio da capacidade do escritor, ser sentida e vivenciada pelo leitor não apenas no nível mental, mas no interior da sua alma e, dotado desse toque profundo, pudesse elevar o seu próprio ser além dos aspectos ordinários que as aparências das coisas levam os sujeitos.

Assim, essa compreensão de Marcel Proust, por meio do seu narrador, consegue problematizar esse dilema e dotar todo aquele que possui apenas o domínio das palavras no âmbito de significados, desprovidos de sentidos profundos e com esta postura constitui-se como sujeito pueril e comum, carente de capacidade literária. A expressividade proustiana se distancia dos aspectos corriqueiros que muitos adotam, visando apenas um processo intelectivo, quando na realidade o autor literário deve ser capaz de mergulhar no mais fundo da sua alma para reconhecer-se nos outros e, a partir daí encontrar-se ao compartilhar esses sentidos que se encontram além das formas superficiais em que muitos adotam como procedimentos de ver, viver e sentir. Ao se dispor em discussão acerca de Bergotte, uma das referências até então do jovem narrador, irá mencionar: “todos eles diziam de Bergotte: ‘É um espírito encantador, tão especial, tem uma forma muito sua de dizer as coisas, um tanto rebuscada, mas tão agradável. Nem é necessário ver a assinatura, reconhece-se logo que é da sua lavra’. Mas ninguém teria ido ao ponto de dizer: ‘É um grande escritor, tem um grande talento’. Nem sequer diziam que tivesse talento. Não o diziam porque não o sabiam. Somos muito vagarosos para reconhecer no aspecto particular de um novo escritor o modelo que leva o nome de ‘grande talento’ em nosso museu de ideias gerais”. Percebe-se que, para Proust, um grande escritor é aquele que consegue oferecer vida por meio da sua narrativa, que revele a alma das suas personagens e que ofereça ao leitor muito mais do que conteúdo ou talento artístico com a linguagem. Ter talento é algo especial que exige muito do sujeito para tornar-se capaz de expressar sentidos por meio de aspectos presentes em seus textos, é tornar o agente leitor um receptor de aguçadas percepções, que saia dos “museus de ideias gerais” e recaia nas singularidades significativas intermediadas pelas ações ficcionais.

Tem-se, então, ao longo dos volumes de Proust, a busca do ser no sujeito diante da constante procura de uma “expressividade perdida”, que possa muito mais ser sentida e transformadora do que apenas o despertar da intelectualidade cega de percepções e sensações.