[Flávio Bittencourt]

Elio Gaspari escreve sobre as pedras da escravidão, descobertas no Rio

O Rio ganhou dois presentes da história.

 

 

  

 

 

 

 

 

 

EXTRA - GLOBO PONTO COM,

1.3.2011 às 23h35:

"Escavações de obra de drenagem da Zona Portuária encontram restos dos cais da Imperatriz e do Valongo"

  

Local do antigo Porto do Rio na Rua Barão de Tefé, na Gamboa (Foto: Gustavo Stephan / Agência Globo)

 

 

(http://extra.globo.com/noticias/rio/escavacoes-de-obra-de-drenagem-da-zona-portuaria-encontram-restos-dos-cais-da-imperatriz-do-valongo-1188339.html)

 

 

 

  

 

 

ESCREVEU O SAUDOSO PROF. MÁRIO YPIRANGA MONTEIRO (1909 - 2004),

MENCIONANDO ESCRAVOS E A FALTA DELES NA AMAZÔNIA (NO RIO DE JANEIRO

NÃO HOUVE ESSA "carência", EM RAZÃO DO FLUXO CONSTANTE PROPICIADO PELO

MEDONHO TRÁFICO NEGREIRO),

ASSINALANDO-SE QUE, SEGUNDO O ERUDITO AMAZONENSE, OS PATRÕES NÃO CHEGARAM

NAS AMÉRICAS RICOS: ora, se enriqueceram, tendo chegado sem capitais, isso só pode

ter acontecido por causa da operosidade profissional DOS DIGNOS ESCRAVOS

VINDOS DA ÁFRICA DE SEUS FILHOS, OS ESCRAVOS JÁ NASCIDOS por aqui:

 

OBS.: OS TRECHOS ADIANTE GRIFADOS (em negrito) SÃO EXPLICAÇÕES DESTA COLUNA, QUE NÃO ESTAVAM NO ORIGINAL:

"(...) A ignorância inefável do europeu pela sua própria história social nos adverte de que os falsos escrúpulos surpreendidos nas suas críticas aos povos americanos resultam em ridículo sintoma de carência de conhecimentos primários da história da humanidade. O erudito historiador que estamos tomando nesta oportunidade para confronto, considera correta a opinião de umas quantas testemunhas da aculturação portuguesa, mas se esqueceu de que a crítica possui uma qualidade ancípite [ancípite = INCERTA, DUVIDOSA, VACILANTE], tanto pode olhar o criticado como o criticante. Além de que louvar-se em opiniões às vezes apaixonadas não é um método seguro para o historiador. Não estamos contradizendo o contexto social acima revelado: ele resiste a qualquer crítica em profundidade histórica e em permanência social. Não há negar que aconteceu aquilo mesmo e acontece hoje. Em Roma deve ser-se romano. Ou em terra de sapo, de cócoras com ele. O que estamos querendo considerar é a questão da força de adaptação condicionada. O português ou espanhol ou qualquer outro colono vindo para a América não era rico. Não trazia bens, não possuía capacidade financeira para aquisição de riquezas. O seu capital eram os braços e a necessidade. Largado numa região em tudo diferente da sua ele teria que reger-se pelos hábitos e costumes locais, melhormente pela lei da selva. O que lhe recusavam na terra natal, terra e escravos para arroteá-la, ele teve na Amazônia em quantidade nababesca. Não é muito certo que tivesse enfrentado o suor e a canícula costumeiras dos seus campos de semeadura natais. O Estado paternalista deu-lhe o chão e o escravo. Não importa que fosse obrigado a pegar no remo quando o escravo faltou-lhe, a região era riquíssima deles ['deles campos de semeadura americanos' ou 'deles remos' (? - *risos*), já que o estudioso refere-se a quando faltaram escravos na Região Norte do Brasil, O QUE NÃO ACONTECEU, POR EXEMPLO, NO RIO DE JANEIRO (sempre chegavam "novos" escravos da África): NÃO FALTAVAM CAMPOS, CANOAS E REMOS NEM AMAZÔNIA, NEM NO LITORAL BRASILEIRO, mas o Autor refere-se, provavelmente, aos CAMPOS PARA PLANTAÇÕES (e não faltavam remos, aliás, porque não faltavam árvores, fornecedoras do insumo denominado madeira], aliás sempre foi generosa em tudo. Mas a crítica se perde na irrelevância do comentário nem sempre apropositado, despojado de verismo social, isto é, da compreensão do fenômeno social amazônico.  (...)

[OS GRIFOS (trechos sublinhados) NÃO CONSTAVAM NO ORIGINAL DO LIVRO

DO PROF. YPIRANGA MONTEIRO.]

Fonte:

MONTEIRO, Mário Ypiranga. História da cultura amazonense (Vol. I). Manaus: Ed. Gov. do Estado do Amazonas, 1977, pp 226 - 227.

 

 

 

 

 

DESENHO QUE RETRATA UM

PONTO DE VENDA DE ESCRAVOS

EM QUE POSSÍVEIS COMPRADORES

EXAMINAM SINAIS DE SAÚDE OU DOENÇA

DAS "peças" A SEREM ADQUIRIDAS,

COMO SE ANIMAIS IRRACIONAIS AQUELES

DIGNOS TRABALHADORES FOSSEM

(http://omeuciberespaco.blogspot.com/)

 

 

 

 

 

 

foto

"Aspásia [ASPÁSIA CAMARGO] e Mauricio de Almeida Abreu no lançamento do livro Geografia Histórica do Rio de Janeiro (1502-1700)"

(http://www.flickr.com/photos/aspasia43123/5474322994/)

 

 

 

 

 

DSC_1855.JPG
 

 

 

 

 

 

 

 

 

"Os professores Luiz Felipe Alencastro, de História do Brasil da Universidade de Paris 4 Sorbonne, na França, e Douglas Cole Libby, da UFMG, atuam como conferencistas"

(http://www.ufmg.br/online/arquivos/007119.shtml)

 

 

  

 

 



 

 

 

 

 

 

 

   

ELIO GASPARI, QUE ESCREVEU

SOBRE A DESCOBERTA ARQUEOLÓGICA

DAS PEDRAS DA ESCRAVIDÃO, NA

REGIÃO DA GAMBÔA, RIO (BRASIL)

(SÓ A FOTO DE E. GASPARI, SEM

A LEGENDA LIDA LOGO ACIMA:

http://blogdojammarinho.blogspot.com/2010/03/elio-gaspari-barack-obama-mostrou-que.html)

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

ROTAS DO TRÁFICO DE ESCRAVOS

DA ÁFRICA PARA O BRASIL:

(http://florao-da-america.blogspot.com/)

 

 

 

 

 

LEIA, SE TIVER TEMPO E INTERESSE,

A MATÉRIA DE ONTEM (16.3.2011), POR FAVOR:

http://www.portalentretextos.com.br/colunas/recontando-estorias-do-dominio-publico/o-prof-leonardo-castro-apresenta-resumo-ilustrado-sobre-o-trafico-de-escravos,236,5822.html

("O PROF. LEONARDO DE CASTRO APRESENTA RESUMO ILUSTRADO

SOBRE O TRÁFICO DE ESCRAVOS")

 

 

 

 

   "Luiz Felipe de Alencastro (1946, Itajaí, Brasil) formou-se em história e ciências políticas na Universidade de Aix-en-Provence (França) e doutorou-se em história na Universidade de Paris-Nanterre. Ensinou nas universidades de Rouen e Paris-Vincennes. Foi professor do Instituto de Economia da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e pesquisador do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap). Atualmente, é professor titular da cátedra de história do Brasil da Universidade de Paris IV-Sorbonne e diretor do Centre d’Etudes du Brésil et de l’Atlantique Sud, Universidade de Paris-Sorbonne. Organizador do volume 2, Império – A corte e a modernidade nacional, da História da vida privada no Brasil, e autor de O Trato dos Viventes – Formação do Brasil no Atlântico Sul, Felipe de Alencastro escreve regularmente em vários jornais.

fonte: www.flip.org.br".
      

(http://www.travessa.com.br/Luiz_Felipe_de_Alencastro/autor/3E5769EC-587C-4C82-A4FE-9FB779E6DE86)

 

 

 

 

 

O PROF. DR. LUIZ FELIPE DE ALENCASTRO

(autor do estudo adiante reproduzido,

após o artigo de E. Gaspari) POSICIONA-SE

A FAVOR DAS COTAS PARA ESTUDANTES 

AFRODESCENDENTES (OU SEJA, NEGROS,

MULATOS E CAFUZOS), NO INGRESSO AO

ENSINO SUPERIOR, NO BRASIL:

 

 

 

Marcelo Brandt/UnB Agência
O historiador Alencastro foi um dos defensores das cotas [PARA INGRESSO, NAS UNIVERSIDADES BRASILEIRAS, DE ESTUDANTES AFRODESCENDENTES] na audiência de hoje

 

 

 

 

 

 

 

 

 

(http://www.unb.br/noticias/unbagencia/unbagencia.php?id=2993,

onde se pode ler:

"TODOS OS TEXTOS E FOTOS PODEM SER UTILIZADOS E REPRODUZIDOS DESDE QUE A FONTE SEJA CITADA. TEXTOS: UnB AGÊNCIA. FOTOS: UnB Agência")

 

 

 

 

 

 

17.3.2011 - A descoberta das lajes de pedra do cais do Valongo constitui uma grande descoberta da ARQUEOLOGIA HISTÓRICA [*], no Rio (cidade do Rio de Janeiro, Brasil) - Um marco dessa importância - é possível prever - tornar-se-á "cartão postal " e ponto de visitação do turismo em massa, uma vez que as pessoas que viajam geralmente querem pisar nos locais históricos de grande significação, na maior parte dos casos tirando fotos, para que seus parentes e amigos as vejam passeando por ali.  ("- Veja você, EU ESTIVE LÁ, como você pode conferir nessa fotografia, QUE NÃO É O RESULTADO DE UM TRUQUE DE MONTAGEM! ")  F. A. L. Bittencourt [email protected]

 [*] - Já a arqueologia pré-colonial (ou "pré-histórica"), no caso brasileiro, estuda os vestígios das sociedade indígenas dos tempos anteriores à chegada de Pedro Álvares Cabral.

 

 

 

 

HELIO GASPARI ESCREVE SOBRE

AS PEDRAS (CARIOCAS) DA ESCRAVIDÃO:

 

"Qua, 09 de Março de 2011.
07:21:00.

O GLOBO | ELIO GASPARI

[OBS. - MATÉRIA TAMBÉM PUBLICADA PELO JORNAL

FOLHA DE SÃO PAULO]
 

O Rio ganhou dois presentes da história

ELIO GASPARI

Um grande livro e o cais de desembarque dos escravos ajudarão a cidade a conhecer seu passado

HÁ MUITO TEMPO o Rio de Janeiro não recebia notícias tão boas de seu passado. É provável que uma equipe de arqueólogos do Museu Nacional tenha encontrado nas escavações da zona portuária as lajes de pedra do cais do Valongo. Entre 1758 e 1851, por aquelas pedras passaram pelo menos 600 mil escravos trazidos d'África. Metade deles tinham entre 10 e 19 anos.
Devolvido à superfície, o cais do Valongo trará ao século 21 o maior porto de chegada de escravos do mundo. Se ele foi soterrado e esquecido, isso se deveu à astuta amnésia que expulsa o negro da história do Brasil. A própria construção do cais teve o propósito de tirar do coração da cidade o mercado de escravos.
A região da Gâmboa tornou-se um mercado de gente, mas as melhores descrições do que lá acontecia saíram todas da pena de viajantes estrangeiros. Os negros ficavam expostos no térreo de sobrados da rua do Valongo (atual Camerino). Em 1817, contaram-se 50 salas onde ficavam 2.000 negros (peças, no idioma da época).
Os milhares de africanos que morreram por conta da viagem ou de padecimentos posteriores, foram jogados numa área que se denominou Cemitério dos Pretos Novos.
Ele foi achado em 1996, durante a reforma de uma casa e, desde então, está sob os cuidados de arqueólogos e historiadores. O cemitério foi soterrado por um lixão, verdadeiro monumento à cultura da amnésia. Devem-se à professora americana Mary Karach 32 páginas magistrais sobre o Valongo. Estão no seu livro "A Vida dos Escravos no Rio de Janeiro - 1808-1850".
Com o possível achado do cais, o prefeito Eduardo Paes anunciou que transformará a área num museu a céu aberto. (Cesar Maia prometeu algo parecido com o cemitério, mas deu em pouca coisa.) Felizmente, as obras do porto respeitarão as restrições recomendadas pelos arqueólogos, até porque, se o Cais do Valongo não estiver exatamente onde se acredita, estará por perto.
O segundo presente são os dois volumes de "Geografia Histórica do Rio de Janeiro - 1502-1700", do professor Mauricio de Almeida Abreu. É uma daquelas obras que só aparecem de 20 em 20 anos. (O livro de Karasch, que está na mesma categoria, é de 1987.)
Ele leu tudo e, em diversos pontos controversos, desempatou controvérsias indo às fontes primárias. Erudito, bem escrito, bem exposto, é um prazer para o leitor. Além disso, os dois pesados volumes da obra estão criteriosamente ilustrados. Nele aprende-se, por exemplo, que o primeiro plano urbano da cidade, do tempo de Mem de Sá, foi traçado por um degredado, Nuno Garcia. (Fuçando-se, sabe-se que era um homicida.)
A edição de 3.000 exemplares, copatrocinada pela Prefeitura do Rio, é um luxo, mas o preço ficou salgado (R$ 198). Sua aparência de livro de mesa pode jogá-lo numa armadilha: quem o tem raramente o lê e quem quer lê-lo não tem como comprá-lo. A prefeitura poderia socorrer a patuleia, providenciando uma edição mais barata ou, até mesmo, uma versão eletrônica.
Quem quiser saber mais (e muito) sobre o Valongo e o Cemitério dos Pretos Novos, pode buscar na internet, em PDF:
Valongo: O Mercado de Escravos do Rio de Janeiro, 1758-1831, do professor Cláudio de Paula Honorato.
À flor da terra: O Cemitério dos Pretos Novos do Rio de Janeiro, de Júlio César Medeiros da Silva Pereira".

(http://cnj.myclipp.inf.br/default.asp?smenu=ultimas&dtlh=158121&iABA=Not%EDcias&exp=)

 

 

 

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O HISTORIADOR LUÍS FELIPE DE ALENCASTRO

ESCREVEU: 

 

"[DATA DA POSTAGEM: Quinta-feira, 22 de abril de 2010]

"Brasil Atlântico e Rio, seu porto negreiro

A história do Brasil e principalmente a do Rio de Janeiro, ouso dizer, está inexoravelmente ligada ao trato negreiro e ao instituto da escravidão. Será essa u´a marca tão vergonhosa como julgou Rui Barbosa ao destruir arquivos que seriam hoje valiosos para reconstituir a história econômica e institucional desse nosso traço? Particularmente eu acredito que parte de fazer as pazes com o passado é reconhecer as marcas dele naquilo que somos hoje, é ver o nosso processo de construção como um contínuo acerca do qual, dada a longa perspectiva, julgamentos morais deixam de fazer sentido uma vez que moral e ética mudam ao longo dos séculos. Podemos sim, afirmar gostar ou não, e isso é algo que nos é dado como a qualquer indivíduo fruto de seu tempo e sua sociedade, mas daí a tecer culpas em uma geração pelo que não constituía para a anterior absolutamente delito algum é um salto enorme.

Querendo ou não, precisamos reconhecer que o trato negreiro nos moldou, em coisas que avaliamos como construtivas de acordo com o estado atual de critérios, mas também em coisas simplesmente íntimas e factuais como a própria língua, modo de nos enxergar diante de outros latino americanos, nossa visão de raça (que desde o governo FHC e nessa era Lulla vem sendo americanizada polarizando e racializando discursos), e assim por diante.

Dentre livros interessantes que, mesmo sem lidar com a questão carioca, terminam por falar muito da nossa cidade está O Trato dos Viventes, de Luís Felipe de Alencastro, que é muito bem escrito, dinâmico e agradável mesmo de ler sem perda de profundidade acadêmica.  Faço um breve resumo de alguns capítulos para dar um gostinho da "trama" e comento ao final.

“Trato dos Viventes” versa a formação do Brasil no Atlântico Sul como parte integrante de um sistema comercial plenamente integrado à economia-mundo, no qual a colônia portuguesa sul-americana seria uma unidade complementar vinculada necessariamente à colônia africana, principalmente Angola, durante os séculos XVI e XVII (posteriormente as levas de escravos ainda viriam desta área, porém boa parte seria trazida também da Costa dos Escravos, atual Benin – Gana).


A postura de análise de Alencastro é econômica e ele se aproxima do tema pelo viés de sistema-mundo, ou economia-mundo, do qual é teórico Imannuel Wallerstein. Citado também é Amaral Lapa, que utiliza a mesma vertente na análise econômica da história, e mesmo que não citado, é de se imaginar forte contribuição de Giovanni Arrighi.

Uma das questões do império português ao final do século dos descobrimentos era como assegurar o controle dos nativos e do excedente econômicos das conquistas, integrando os colonos, ou gente remota ao aparelho institucional reinol. Para isso seria, nas palavras de Alencastro, preciso “colonizar os colonos”, isto é, capturá-los nas malhas metropolitanas. Esta “captura” teve matizes diferentes em diferentes partes das possessões portuguesas: Goa, Conchim, Moçambique, Angola e Brasil.

O domínio colonial em Angola se equilibra entre o poder jesuíta e dos capitães – donos de Capitanias similares as existentes no Brasil, que arrecadam tributos dos Sobas, chefes nativos, que lhes são avassalados. A troca de poder destes para a coroa portuguesa e negociantes reinóis coincide com o incremento do intercâmbio marítimo com a colônia americana, que necessita de escravos para sua produção.
 


O controle espanhol se dá mais sobre a circulação das mercadorias (produtos). O trato de escravos não se adaptava às restrições deste tipo de comércio. Madri então estabelece os Asientos, subempreitando o tráfico negreiro aos genoveses e em seguida aos portugueses.

Para Luanda seguem mercadorias de escambo, e para o Brasil e colônias americanas escravos como fatores de produção ou mercadorias de ganho, estabelecendo verdadeiro comércio bilateral, vez que mercadorias vivas não suportariam o transbordo em Lisboa.

O trato negreiro extrapola o comércio para moldar a economia, a demografia, a sociedade e a política da América Portuguesa, numa perspectiva aterritorial, a partir do atlântico.

Os ganhos fiscais sobrepõem-se aos ganhos econômicos da escravidão. Para a corôa o trato negreiro representa arrecadação tributária, enquanto que para o comprador de escravos, representa necessária mão de obra para uma imensa empresa  colonial.

Ao longo de uma evolução iniciada em meados do século XIV, o trato lusitano se desenvolve na periferia da economia metropolitana e das trocas africanas. Em seguida o negócio se apresenta como uma fonte de receita para a Coroa e reponde à demanda escravista de outras regiões européias. Por fim, os africanos são usados para consolidar a produção ultramarina.

A escravização do africano seria facilitada pela existência de pré-condições geográficas e históricas: sociedades que conheciam o valor mercantil do escravo, que teriam a escravidão como prática, facilidades de acesso. Onde inexistiam tais pré-condições o encadeamento do trato se revela problemático.

Duas mercadorias com impacto direto na produção mercantil de escravos: cavalos e armas de fogo – utilização na captura e no escambo com aliados nas disputas tribais.

A justificação evangélica do trato negreiro seria o resgate de almas da África (território de eleição do demônio), salvas do canibalismo e das guerras intertribais. Entretanto tanto a evagelização, como as empreitadas militares como a ocupação colonial branca na África Ocidental, esbarravam em problemas de diversas naturezas, dentre as quais uma das mais graves estava a Primeira doença, ou as febres que acometiam os estrangeiros. O quadro epidemiológico apresentado pela região era constituído pó febre amarela, tipos letais de malária, varíola, varicela, dentre outras doenças que ceifavam a vida de estrangeiros e mesmo de negros vindos de outras partes do continente.

 
O tráfico negreiro entre o continente africano e americano se viam facilitados por uma regularidade atmosférica e marítima de navegação leste-oeste chamados African slave trade winds, o anticiclone de capricórnio. Isto tornava mais fácil ir buscar escravos na África do que transportá-los ao longo da própria costa brasileira, no caso do norte do Brasil (Maranhão-Grão-Pará), e mesmo entre o eixo Salvador-Rio de Janeiro.

 
São Tomé se apresenta como laboratório da experiência portuguesa de colonização no trato de escravos, porém um levante de negros escravos e proprietários mulatos, exacerba a disputa racial e fissuras na empreitada escravista, que viriam selar a empresa colonial na américa portuguesa. Evidencia-se a importância dessa primeira sociedade colonial formada pelos enclaves ibero-africanos nas Canárias, Cabo Verde, na Madeira, nos Açores e em São Tomé - na adaptação prévia aos trópicos e ao escravismo de técnicas portuguesas e luso-africanas desenvolvidas em larga escala na América portuguesa. São Tomé se firma como um entreposto comercial importante no comércio atlântico, junto com Luanda e Benguela, drenando o interior da áfrica ocidental de escravos como fatores de produção para o comércio ultramarino, estes mesmos um produto deste comércio.

Nesta época, mais do que uma conquista focalizada no domínio de terras e minerais, a colonização de Angola caracterizou-se por uma caça de homens imbricada no mercado mundial. No entanto, essa caça era feita por africanos no contexto de suas lutas internas, na qual o elemento europeu se encaixa como consumidor do excedente humano produzido e ator/parceiro na política continental.

 
O índio não escravizável
A organização social dos tupis, aruaques, caribes e jês permanecia avessa à troca extensiva de escravos. Isto eliminava das pré-condições necessárias ao estabelecimento do trato escravista. Onde se quisesse transformar indígenas em fornecedores de escravos, carecia transformar sociedades coletoras e caçadoras em sociedades preadoras de homens.

 
Formas de apropriação dos indígenas: a) resgates – troca de mercadorias por índios prisioneiros de outros índios; b)cativeiros – índios apresados em guerras justas consentidas e determinadas pelas autoridades régias por tempo limitado e contra certas etnias; c) descimentos – deslocamento forçado dos índios para as proximidades dos enclaves europeus e neste caso o trabalho era assalariado e recolhido pelos administradores dos aldeamentos, a sj.

 
Alencastro destaca os seguintes fatores que concorrem para limitar o cativeiro indígena: a dificuldade de colocar as sociedades indígenas a colaborar ativamente no trato de escravos; a opção da igreja portuguesa pela evangelização da população nativa que se tornava tanto força de trabalho das missões que lhes administrava os ganhos como facilitava a manobra de poder; o indígena como limitante da ameaça interna que representava a massa de escravos da guiné e que assim os circunscrevia aos espaços colonizados pela produção escravista (território dominado pelo senhoriato); e a fragilidade epidemiológica dos indígenas até os descobrimentos não expostos às correntes epidêmicas que já corriam o mundo ao longo das rotas comerciais; dificuldade de comércio entre-capitanias facilitava o comércio entre as margens do atlântico, seja pela maior viabilidade de navegação, de trocas de mercadorias (mercado, circulação monetária e crédito), facilidades fiscais, entre outros exaustivamente declinados pelo autor. De fato o autor abdica de qualquer determinismo científico, para adotar uma multicausalidade, e aponta assim a inviabilidade estrutural da exploração da escravidão indígena, privilegiando a complementariedade no trato com Angola.

 
Este não uso de mão de obra indígena será menos freqüente no Grão-Pará e Amazonas, alavancados tardiamente para o eixo do atlântico sul.

 
O Trato dos Viventes oferece contribuições interessantes sob a perspectiva da saúde: lembra que os Descobrimentos completam uma corrente de “unificação microbiana do mundo”. Populações foram ceifadas por doenças exógenas à suas regiões. Observa Alencastro que o período desde a captura até a chegada no porto de destino atua como uma espécie de seleção dos mais aptos, inclusive, senão principalmente, sob o aspecto sanitário. A medicina no trato comercial e nas colônias não costumava ser exercida apenas por doutores, isto é, por pessoas com instrução formada adquirida na metrópole e com autorização para a prática, mas também por empíricos, pessoas que se apropriavam dos conhecimentos dos povos locais e os aplicavam no tratamento das moléstias. Conflitos existiam entre essas duas espécies, sendo que a primeira estava habitualmente encarregada de funções avalizadas pelo poder real. Porém o empírico estava mais próximo das necessidades da população e da manutenção da saúde do cativo. A medicina jesuítica empregava medicamentos aprendidos dos povos indígenas combinandos aos métodos de diagnóstico clássicos.

 
O texto descreve o processo de dessocialização do escravo, no qual ele é retirado de sua sociedade e colocado em outra, sendo sempre um estrangeiro, onde não domina língua e costumes, e onde é ao mesmo tempo despersonalizado, isto é, tornado objeto de comércio, mercadoria-meio, fator de produção. Ressalta também a maior facilidade financeira de compra de escravos para reposição do que a reprodução de escravos no ambiente escravista americanos. Ainda que a produtividade do escravo seja constante, a produção aumenta pelo aumento do número de escravos, e este número pode ser incrementado pelo incremento do tráfico negreiro, assim é um jogo de ganho duplo para a Coroa vinculando os dois lados de suas possessões atlânticas.

O Trato Negreiro, ou  de Viventes, altera dramaticamente a demografia brasileira. Traz enormes contingentes negros feitos de diversos grupos pertencentes a alguns grandes grupos lingüísticos maiores, e nos dois séculos focalizados por Alencastro, se concentram nas etnias bantu, subsaarianas (grupos de idioma ambundo e kimbundo). Isto causou um forte impacto nas relações com os indígenas, alterou as relações de poder na colônia, insulando, por exemplo a província vicentina e a vila de Piratininga, preadoras de índios, que passaram a ser controladas pela Coroa, mediante intervenção fluminense (olhem como as rivalidades Rio/São Paulo vão longe...). As pressões do Trato por mercadorias de escambo intensificaram a produção de mandioca (e farinha), cachaça, tabaco, e outros gêneros, estabelecendo um comércio bilateral com a colônia africana, liderado pelo Rio de Janeiro (que liderou a Reconquista de Angola), e gerou uma forma de viver e fazer comércio voltada para o Atlântico, que não necessariamente incluía a metrópole.

 
Curioso observar que as palavras de origem africana incorporadas à língua portuguesa mais comuns derivam do kibundo e do ambundo, ou da língua geral negreira, tais como banguela, bamba, ginga, assim como alimentos comuns no sudeste brasileiro foram influenciados pelos hábitos africanos – cuzcuz de milho, mingaus, frutas trazidas pelos brancos no projeto colonial e a idéia de que não a raça, mas a condição de escravo era mais importante do que a cor em si, que é vista na postura da Corte em relação aos Sobas, à ordenação de religiosos negros, aos tratados e alianças com nativos dos dois continentes, etc. O autor descreve o escravo como desentranhado, possuído por despossuído de si mesmo e convertido em mercadoria, e as possibilidade de reprodução social dele, repondo o que sai dessa condição, o próprio sair da escravidão como possibilidade via rebeldia ou de ascensão pela lei e pela mercancia.

De certa maneira, não fossem os escravos, poderíamos ser, quem sabe, um país que falasse o nhéengatu e não o português!

 
Em outra ocasião podemos ver o escravo como elemento fundamental à civilização do Brasil, antecedendo em muito à colocações de Gilberto Freyre, em um livro chamado Cartas à favor da Escravidão, escrito por José de Alencar (não é o atual vice-presidente, não, tá?)

 
O Trato dos Viventes: formação do Brasil no Atlântico sul
Luís Felipe de Alencastro – São Paulo: Cia das Letras, 2000