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[Paulo Ghiraldelli Jr.]

Separar-se e criar um campo próprio imunitário é uma regra exposta nas antropotécnicas de Peter Sloterdijk. O homem é, para ele, um designer de interiores – desde sempre. Põe e repõe o útero. E então um dia percebe que a própria Terra é um tipo de nave espacial, um grande útero, que caminha pelo espaço. Mas, ainda quando percebe isso, também percebe que o interior da nave continua com divisões que se propõe a serem mini cápsulas. Há muros, muretas e muralhas por todos os lados.

O problema mundial atual não é o de criar uma grande sociedade humana sem muros. O que se busca atualmente, queiramos ou não, é a manutenção do nosso trabalho de reprodução celular em todos os níveis, de modo que nossas esferas imunitárias tenham sua membranas segundo um sistema de comportas que possa manter o nível de imunização, sem que isso se torne uma barreira completa. Do nosso corpo ao corpo dos animais e outros e chegando às nossas cidades de nações, precisamos de sistemas de comportas, membranas ativas.

Membranas ativas são muros. Mas não quaisquer muros. São sistemas de comportas que permite que o palestino possa vir para o mundo de Israel, que o mexicano possa vir para os Estados Unidos, que o refugiado da Síria possa entrar na Europa e que o nordestino possa continuar vindo construir o metrô em São Paulo. Nenhum lugar em que a bolha deu certo pode ter uma membrana rígida. Para a bolha dar certo é necessário, no interior, um regime de transição no desiderato do rareamento do serviço difícil e da ampliação do serviço fácil. As bolhas não se automatizam de modo instantâneo. Há lixo para ser recolhido que não é feito por máquinas. Estamos num longo processo cujo objetivo é fazer com que as células possam sobreviver de mitocôndrias próprias. não poluidoras, auto-limpáveis. Alguém tem que energizar tudo, e para tais temos artistas e novelas, mas ainda temos de construir as calçadas e lavar banheiros. Nesse ultimo caso, as membranas, os muros ativos, precisam saber deixar passar os que se põem como voluntários do exterior para vir para o interior, a fim de enfrentar a coleta do lixo, as privadas que precisam ser limpas e tudo o mais desse tipo. Há membras organizadas para tal, há membranas cuja organização é espontânea. Nenhum maluco vai construir um muro entre o México e os Estados Unidos de modo a deixar texanos tendo de lavar banheiros. Mexicanos nasceram para tal.

O problema do Muro de Berlim foi que ele não era uma membrana, como os modernos muros. Ele se fez de pedra e ideologia. Membranas podem ser de vários materiais, menos o ideológico. As membranas devem ser pragmáticas. Um mexicano que corre no deserto para entrar nos Estados Unidos deve ser abatido de longe, pelos rifles dos Rangers. Mas se forem dez mexicanos, não custa deixar passar dois. Assim funcionam todos os muros atuais. Por isso eles podem durar mais que o Muro do Berlim. São membranas celulares, não propriamente muros. Devemos saber equalizar as necessidades internas, pesando quem usa o banheiro e quem lava tal coisa.

Mas isso não elimina problemas. No interior, podem surgir trabalhadores de lugares decadentes, que vão reclamar da imigração ilegal, como quem votou em Trump ou quem fez os ingleses quererem ficar mais longe da Europa, criando uma membrana maior que o Canal da Mancha. Então, os interiores se fazem caóticos por alguns momentos. Membranas burras não perduram.

Olhando por essa dinâmica, a dos interiores e exteriores, podemos perceber a razão pela qual nunca os Estados Unidos, seja por meio de democratas ou republicanos, criou de fato um sistema de ajuda econômica devida ao México, de modo a estancar o fluxo migratório exagerado. Nunca quisemos, no Brasil, realmente parar a “indústria da seca”, de modo a interromper de vez o fluxo dos povos do nordeste para São Paulo. Há um medo generalizado das classes médias, no mundo todo, diante de suas calçadas, banheiros e outros empregos insalubres. Em alguns lugares onde minorias (como os negros americanos) deixam de fazer o serviço fedorento, é necessário tornar o fluxo migratório uma oportunidade maior.

É impossível para seres como nós, gerados por sistemas celulares e por sistemas placentários na base de funcionamento de membranas, repentinamente deixarmos de ter mães, úteros, placentas e perímetros inteligentes. Esse modelo é nosso, é o que nos fez o que somos.

Paulo Ghiraldelli, 59, filósofo. São Paulo, 23/11/2016

Fotos significativas da fronteira Estados Unidos – México: Clique aqui.

Foto da capa: placas de metal que fizeram muro entre Estados Unidos e México vieram de material de uso do Exército Americano no Vietnã, onde os americanos estiveram durante vinte anos, numa guerra de preservação de outro muro, aquele que existia entre Sul e Norte.