Drumond:"Europa, França e Bahia"
Por Bráulio Tavares Em: 10/09/2010, às 12H01
[Braúlio Tavares]
(charge de J. Carlos em O Malho)
Minha primeira lembrança desta expressão foi no famoso poema de Ascenso Ferreira, “Oropa, França e Bahia”, do livro Xenhenhém (1951). Só depois de algum tempo percebi que ela já estava neste poema de Drummond em Alguma Poesia (1930), e bastou-me esfregar a lâmpada do Google para o Gênio emergir, de braços cruzados, e me informar que a frase já surgia no Macunaíma de Mário de Andrade, que é de 1927. Não pedi ao Gênio que buscasse mais longe; meu assunto se detém aqui.
O Modernismo brasileiro foi mais um de tantos movimentos (do Romantismo ao Tropicalismo, do Regionalismo ao Armorial) que tentou definir a brasilidade num país onde todos se sentiam estrangeiros e, ao mesmo tempo, diferentes de todos os estrangeiros que conheciam. Este drama de conceituar o que é ser brasileiro, claro, só ocorre às nossas elites, aos brasileiros que leem livros e discutem abstrações. O povo, mesmo, fala a sua Língua Geral, trabalha, brinca seu samba ou seu fandango, brasiliza 24 horas por dia, pratica o Brasil sem conhecê-lo de fora.
O poema de Drummond é uma contemplação irônica da Europa com que nossos “mazombos” sonham, felizes na sua ilusão de exílio, no seu consolo de serem elite no único lugar do mundo onde seriam elite: este continente exótico de gente escura e sem modos. Drummond faz caricaturas da França, Inglaterra, Alemanha, Itália, Suíça, Rússia... Seus versos são um equivalente verbal às charges políticas de Ângelo Agostini, J. Carlos ou Raul Pederneiras, aos cartuns políticos de revistas como O Malho, Careta e Fon-Fon. A Europa ilustre aparece aqui distorcida e cômica, vista pelo olho desafiador do “humour” (Drummond já usou a palavra assim, indicando sua conotação britânica, distanciada, cheia de “understatement”). Uma coleção de clichês sarcásticos em que a velha Europa aparece despida da grandiosidade colonial, reduzida à condição de Império em crise.
Drummond é quase profético, neste poema pós-I Guerra Mundial, ao descrever a Alemanha como um lugar onde “homens de cabeça rachada cismam em rachar a cabeça dos outros / dentro de alguns anos”, cabendo apenas a ressalva de que a II Guerra foi, claramente, uma continuação da primeira, após uma pausa para rearmamento. E demonstra uma simpatia de cineclubista-de-esquerda pelos “sujeitos com um brilho esquisito nos olhos (que) criam o filme bolchevista”, o que me lembra um soneto de Vinicius de Morais em homenagem a Eisenstein, talvez o único soneto da poesia brasileira cuja chave-de-ouro é em russo.
É um dos primeiros poemas em que Drummond define uma brasilidade às avessas: não descrevendo o Brasil, mas descrevendo o mundo lá fora e através disto criando, implicitamente, um olhar brasileiro, um modo brasileiro (irônico, deslizante) de encarar a Europa que nos criou e nunca deixou de nos fascinar. “Olhos brasileiros sonhando exotismos”: os exóticos são eles, o centro do mundo somos nós, mesmos que não saibamos quem somos.