Dr. Deusdedit Sousa: um obstinado defensor da ética, da liberdade e da cidadania
Em: 05/06/2022, às 23H13
Reginaldo Miranda[1]
Entre os advogados que militaram com destaque na cidade de Teresina nas últimas décadas, figura o Dr. Deusdedit Sousa, que fora presidente da seccional piauiense da Ordem dos Advogados do Brasil.
Nascido em 13 de fevereiro de 1922, na cidade de Amarante, era filho de Henrique Luiz de Sousa e Luiza Ribeiro de Sousa, agropecuaristas na fazenda Nova Olinda, daquele termo, ambos oriundos de tradicionais famílias daquela região. Pelo costado materno, era neto de Marcolino José Ribeiro e Senhorinha Sousa Ribeiro, primos entre si, ambos bisnetos do juiz ordinário de Vila Nova Del Rei, no Ceará, Antônio Barbosa Ribeiro, que em face de disputas políticas, fora barbaramente assassinado em 3 de março de 1795, em sua própria casa, por um bando de jagunços a mando de seus opositores. A viúva Ponciana Brito de Farias, depois de apurar os haveres e estabelecer os filhos no Médio Parnaíba piauiense, à moda espartana, em busca de justiça, fez três viagens seguidas para à corte de Lisboa, só descansando depois de ver os cruéis assassinos de seu marido encarcerados na cadeia do Limoeiro, naquela cidade[2].
Na fazenda paterna, Deusdedit Sousa viveu os anos despreocupados da infância, entretido nas brincadeiras próprias de sua época. No entanto, chegando à idade escolar, fora enviado em companhia do primo Aluísio Soares Ribeiro, mais tarde deputado estadual e desembargador de nosso tribunal de justiça, para estudar na cidade de Amarante, sob os cuidados dos tios maternos, Gil José Nunes e Presilina Liberalina Ribeiro do Bonfim, conceituados comerciantes naquela cidade. Era a época de desasnar a mente, aprender as primeiras letras, instruir-se.
J. J. Rousseau afirmou, em suas Confissões, que sua educação durante os primeiros anos fora diligentemente ministrada sob o zelo e cuidados dos que o cercavam, sem tempo para “correr às soltas pela rua com as outras crianças”[3]. Penso que Deusdedit Sousa poderia dizer o mesmo da sua educação durante a infância amarantina, porque ali fora aluno de dois consagrados mestres da educação piauiense, depois ambos, membros titulares da Academia Piauiense de Letras. Durante os três primeiros anos da instrução primária, tornou-se aluno de seu parente Odilon Nunes, que regia o conceituado “Ginásio Amarantino”. Em seguida, cursou o quarto e último ano no “Ateneu Rui Barbosa”, sob a competente direção do mestre Cunha e Silva, que sucedera Odilon Nunes na educação da juventude amarantina, quando, então, constituía-se aquela cidade num dos principais centros comercias e culturais do sertão piauiense.
Formada a base educacional, mudou-se para a cidade de Teresina, empregando-se a partir de 1944, com 22 anos de idade, como representante da firma NARCISO, MACHADO & CIA, depois MACHADO & TRINDADE, hoje PEDRO MACHADO S/A, oportunidade em que viajou fazendo vendas por diversas partes do Piauí e Maranhão. Crescendo no conceito da empresa, onde trabalhou por 16 anos, até 1960, foi promovido para Chefe de Escritório, Gerente de Filial e, finalmente, Procurador. Nesse período, conquistou liderança em seu segmento de trabalho, sendo eleito presidente do Sindicato dos Empregados no Comércio de Teresina, em dois biênios (1958-1960 e 1961-1962). Na qualidade de líder sindical, em 1959, assumiu a vaga de vogal suplente da Junta de Conciliação e Julgamento de Teresina (TRT), em cuja situação assumiu a titularidade por quatro meses.
Em 1960, participou da fundação da Junta de Recursos do Instituto de Aposentadorias e Pensões dos Comerciários (IAPC)[4], em cuja composição permaneceu por três anos (1960-1962). Em 1961, participou da fundação do Serviço Social do Estado (SERSE), assumindo naquele ano o cargo de diretor-comercial.
No entanto, desde março de 1955, Deusdedit Sousa retomava os estudos, cursando o ensino ginasial no colégio “Demóstenes Avelino”, que conclui ao final de quatro anos. Nesse período, foi eleito orador oficial do Grêmio Literário “Lima Rebelo”, daquela escola. Em 1959, inicia o curso técnico em contabilidade na Escola Técnica de Comércio “Prof. Felismino Weser”, concluindo ao final de 1961, quando foi orador oficial da turma. Mais tarde, para se manter e continuar nos estudos, assume, como professor desta última escola, a disciplina de Estatística, lecionando durante os anos de 1963 a 1976.
Em 1958, foi aprovado em concurso público para o cargo de tabelião realizado pelo Tribunal de Justiça do Piauí, não assumindo, porém, o cargo.
Em 1960, inscreveu-se como sócio efetivo do Sindicato dos Jornalistas Profissionais do Piauí (Matrícula n.º 15/60).
Continuando nos estudos, em 1962, ingressou na Faculdade de Direito do Piauí, alcançando o bacharelato e colando grau em 1966. Na oportunidade, foi orador da solenidade de despedida dos bacharelandos. Em seguida, inscreveu-se na seccional piauiense da Ordem dos Advogados do Brasil, obtendo a inscrição n.º 587/67. Portanto, possuía 45 anos de idade quando concluiu o curso de Direito e iniciou-se na advocacia. Essa sua trajetória de vida escolar constitui-se num belo exemplo de força de vontade, ao retomar os estudos quando já tinha uma carreira profissional consolidada no comércio e ocupava posição de destaque no movimento classista e na sociedade piauiense. Ainda teve tempo para fazer história na advocacia pública, carreira que abraçou na maturidade, conforme delineado nessas notas.
No Departamento de Estradas de Rodagem do Piauí, exerceu os cargos de diretor das divisões de contabilidade (1963 – 1964) e administrativa (1965 – 1967), além de diretor-geral[5] substituto (1971 - 1979). Em 1975, empregou-se no cargo de procurador do Estado do Piauí, lotado inicialmente no Departamento de Estradas de Rodagem (DER-PI); no ano seguinte, passando para a Procuradoria Geral do Estado, onde alcançou a aposentadoria. Em 1968, publicou o livro Prática comercial, impresso na Papelaria Piauiense. Mais tarde, faria um curso de Técnico em Administração, cujo diploma foi expedido pelo Ministério da Educação em 29 de julho de 1975. Por via de consequência, registrou-se no Conselho Regional de Administração da 3ª Região, com sede em Fortaleza, sob n.º 395.
Na Junta Comercial do Estado do Piauí, Dr. Deusdedit Sousa vai atuar por seis anos intercalados, como vogal suplente representando a classe dos advogados (1979 – 1983), vogal efetivo (1986 – 1987) e presidente entre os meses de março e setembro desse último ano.
Porém, o momento solar da vida profissional do advogado Deusdedit Sousa vai dar-se com sua atuação nos quadros da Ordem dos Advogados do Brasil. Foi eleito pela primeira vez para vice-presidente do conselho seccional como companheiro de chapa do presidente Reginaldo Furtado, atuando no período de 25 de março de 1979 a 31 de janeiro de 1985, por quase seis anos consecutivos.
Na sucessão, candidatou-se em acirrada disputa sendo eleito para presidente do conselho seccional ao vencer a chapa encabeçada pelo advogado Josino Ribeiro Neto. Tomou posse da presidência do conselho seccional da OAB em 1º de fevereiro de 1985, cujo mandato concluiu em 31 de janeiro de 1987. Foi uma gestão profícua durante conturbado período de nossa história, atuando em defesa das prerrogativas profissionais dos advogados, da efetivação da abertura política e manutenção do regime democrático. Com o povo nas ruas, o Brasil abria-se para eleger no colégio eleitoral, nas últimas eleições indiretas, o primeiro presidente da república alheio ao regime militar. Porém, um fato que marcou a gestão de Deusdedit Sousa foi a conclusão e inauguração de prédio próprio, onde funciona a atual sede da OAB-PI. Dessa fase, interessante é o depoimento do desembargador Luiz Gonzaga Brandão de Carvalho, então defensor público, que participou da chapa adversária e depois compôs com a diretoria deusdetiana, demonstrando o espírito conciliador de ambos os contendores:
“Na nossa seccional da OAB-PI, as pugnas eleitorais sempre foram acompanhadas com interesse não só pelos advogados, mas também pela própria sociedade.
‘Fiz parte da chapa encabeçada pelo Dr. Josino Ribeiro Neto, tendo como oponente o advogado Deusdedit Sousa, como candidatos à presidência.
‘Nossa chapa foi derrotada com uma ampla maioria de votos e com esse resultado, voltei às minhas atividades de advogado e defensor público, deixando a política de classe por algum tempo. Nesse ínterim, embora tenha sido oposição ao presidente Deusdedit Sousa, por ele fui chamado e aceitei compor definitivamente o Conselho da respectiva instituição, em face de uma renúncia naquela oportunidade; Deusdedit Sousa tinha por mim uma afeição muito grande, eu com a mesma reciprocidade; embora opositor, passei a fazer parte de sua vitoriosa administração, dando-me ele oportunidade para um engajamento mais forte dentro da classe de advogados de antanho; continuando em administrações posteriores, culminou com uma longa passagem quase que vintenária, onde participei de todas as comissões e cargos, inclusive de vice-presidente e presidente interino na presidência do então advogado Nildomar da Silveira Soares. Por isso, afirmo que Deusdedit Sousa foi o homem que me colocou dentro do aparelhamento da OAB, dando-me a oportunidade de dar meu ‘pontapé’ inicial rumo à escolha do Quinto Constitucional como desembargador de nosso Tribunal de Justiça, fato que ocorreria há alguns anos depois”[6].
Finaliza o desembargador Brandão de Carvalho dizendo da personalidade e características de seu dileto amigo, com quem convivera por largos anos, na forma seguinte:
“Homem íntegro, de compleição leve, olhar profundo, sentimento altruístico, afável, doce, bem humorado ao mesmo tempo sério e diligente, essas qualificações bem se ajustam à figura deste grande causídico piauiense”[7].
Em sua carreira profissional Dr. Deusdedit Sousa, assumiu ainda os cargos de membro efetivo do Conselho Regional de Contabilidade do Estado do Piauí (1972 - 1973); membro efetivo do Conselho Fiscal do Banco do Estado do Piauí (1975); membro efetivo do Conselho Fiscal da Associação dos Administradores do Estado do Piauí (1984); membro do Conselho Fiscal da Companhia de Desenvolvimento do Piauí – CODERPI, por quatro anos; diretor financeiro da empresa Águas e Esgotos do Piauí S/A – AGESPISA (1995 a novembro de 2001); e, presidente da Fundação Cultural do Piauí, de junho a agosto de 1988. Exerceu, também, por eleição dos consócios a vice-presidência do Jockey Club do Piauí, por cinco anos, em cuja gestão foi inaugurada a nova sede da entidade.
No campo literário, integrou na qualidade de sócio efetivo a União Brasileira de Escritores (UBE-PI), filiando-se em 1º de dezembro de 1979. Foi, também, eleito e tomou posse como membro efetivo da Academia de Letras do Médio Parnaíba, como sede em Amarante, sua terra natal.
Como reconhecimento pela laboriosidade de sua vida pública, recebeu as seguintes homenagens e comendas: Medalha do Mérito da Segurança do Trabalho, concedida pelo Ministério do Trabalho, em 10 de novembro de 1961; Medalha da Ordem Estadual do Mérito Renascença do Piauí, no grau de Oficial, concedida pelo governo estadual em 1986; Medalha do Mérito Judiciário “Des. Helvídio Clementino de Aguiar”, concedida pela Associação dos Magistrados Piauienses, em outubro de 1986; Medalha do Mérito “Conselheiro Saraiva”, concedida pela Prefeitura de Teresina, em 1997; Diploma do Mérito Jornalístico, concedido pelo Sindicato dos Jornalistas Profissionais do Piauí, em 10 de setembro de 1999; e, por fim, Medalha “Coelho Rodrigues”, outorgada pela OAB-PI, em 2008.
No último dia 13 de fevereiro, o conselho seccional da Ordem dos Advogados do Brasil celebrou em grande estilo o centenário de seu nascimento, de que ele não pudera participar pessoalmente da solenidade em virtude de doença. Para o atual presidente da OAB-PI, Celso Barros Neto, o Dr. Deusdedit Sousa “foi um grande líder, uma referência para a advocacia piauiense”[8].
De fato, chegou ele até às vizinhanças daquela idade bastante lúcido e frequentando diariamente o escritório estabelecido no centro da capital, para onde ia invariavelmente trajado a caráter, em alinhados ternos e dirigindo pessoalmente o seu automóvel. Talvez, esse trabalho diário tenha contribuído para manter a lucidez e o vigor intelectual em avançada idade. Era frequente nas reuniões da OAB, onde compunha o quadro de conselheiros vitalícios. Dr. Deusdedit Sousa foi um caráter invulgar, ético, correto, honesto, amigo, afável, verdadeiro gentleman que sabia valorizar as boas amizades. Em sua última entrevista, ainda lúcido aos cem anos de idade, deixou essa lição:
“A advocacia é feita para ajudar as pessoas a viverem quando são atacados nos seus direitos, naquilo que lhes pertence. É para isso que existem os advogados, para fazer sustentar a vida corretamente. As pessoas têm que se tratar bem, se respeitar e saber que precisam viver um ao lado do outro. Ninguém é maior que ninguém. Isso eu sempre defendi como advogado e defendo até hoje. Não admito ninguém maior que ninguém, todos somos pessoas humanas e merecemos ser bem tratados”[9].
Portanto, até o fim da vida manteve-se como padrão de ética profissional e na defesa dos ideais de liberdade e cidadania.
Foi casado com a professora Elita Raulino de Almeida Sousa (1924 – 2016), filha de Manoel José de Almeida e Francisca Raulino de Almeida, ambos oriundos de tradicionais famílias das cidades de Barras e Altos, respectivamente. Do consórcio, deixou três filhos, todos naturais da cidade de Teresina, a saber: João Henrique Almeida Sousa, nascido em 4 de fevereiro do 1950, foi secretário estadual de educação, deputado federal, presidente dos correios e ministro dos transportes, dentre outros cargos; Jorge Henrique de Almeida Sousa, empresário, nascido em 11 de dezembro de 1954; e Eneida Almeida Sousa, servidora pública, nascida em 7 de maio de 1958.
Faleceu o Dr. Deusdedit Sousa, em 2 de março de 2022, na cidade de Teresina, onde residia e foi sepultado no cemitério São José. O velório transcorreu na sede da OAB e o cortejo fúnebre foi acompanhado por inúmeros familiares, amigos e autoridades constituídas. Deixou um nome honrado e um legado de trabalho e de defesa da cidadania e da ordem democrática. Muito justas, pois, as homenagens póstumas que lhe devota a Ordem dos Advogados do Brasil, entidade a que tanto serviu e às quais nos associamos.
[1] REGINALDO MIRANDA, advogado especialista em Direito Constitucional e em Direito Processual, foi membro do Tribunal de Ética e Disciplina da OAB-PI, da Comissão de História, Memória, Verdade e Justiça, assim como cofundador e presidente da Associação de Advogados Previdenciaristas do Piauí. Representa a OAB-PI na composição da Comissão de Estudos Territoriais do Estado do Piauí – CETE (17.2.2021 – 31.1.2023). É membro da Academia Piauiense de Letras e do Instituto Histórico e Geográfico do Piauí.
[2] MIRANDA, Reginaldo. Apontamentos genealógicos da família Nunes. Coleção Genealogia Piauiense 1. Teresina: APL, 2013.
[3] ROUSSEAU, Jean-Jacques. As confissões. Trad. e prefácio de Wilson Lousada. Rio de Janeiro: José Olympio, 1948.
[4] O IAPC foi criado em 1934, no Governo de Getúlio Vargas e com a extinção posterior, sua estrutura passou a integrar o INSS.
[5] Em 1972, foi orador oficial da solenidade de encerramento da 1ª. Reunião de Diretores de Órgãos Rodoviários – REDORE, em Porto Alegre (RS), por delegação unânime dos Diretores de DER’s do Brasil.
[6] L. G. Brandão de Carvalho, desembargador do TJPI pela vaga do Quinto Constitucional da OAB. Depoimento ao autor em 24 de abril de 2022.
[7] L. G. Brandão de Carvalho. Idem.
[8] Celso Barros Coelho Neto. Nota de pesar firmada em 2 de março do corrente ano e publicada no site oficial da OAB-PI: http://www.oabpi.org.br/nota-de-pesar-deusdedit-sousa/
[9] Entrevista concedida ao jornalista Waldelúco Barbosa. Portal Meio Norte, 13.2.2022.
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