Pégaso. Fonte: Google
Pégaso. Fonte: Google

DIÁRIO

Elmar Carvalho

30/03/2020 

            Estava me sentindo ameaçado, entre pessoas estranhas, numa cidade que não identifiquei. Fugia numa motocicleta pequena, que não atendia a meu comando de aceleração. Parecia que ela a qualquer momento poderia “estancar”, pois também não obedecia às minhas tentativas de redução de marcha. As luzes da cidade eram mortiças, e eu pouco enxergava na penumbra que tudo embaçava. Quando eu estava mais angustiado e apreensivo, acordei. Constatei, de imediato, que se tratava de um sonho, pois eu cavalgava uma rede, e não uma motocicleta.

            Vamos a outro sonho, ocorrido na mesma madrugada de anteontem, cuja narrativa será igualmente curta, e, acredito, um tanto jocosa. Estava num quarto ou numa sala, com familiares, quando apareceu um rapaz, conhecido de minha filha. Logo se comentou que ele calçava uma sandália nova e baixa, mas um pouco depois já não era sandália, e sim um tamanco leve, feito talvez de cortiça. Não me contive e disse: “É melhor você usar um tamanco grosso, grande e pesado, feito de aroeira, para engrossar suas pernas de cambito!” A gargalhada foi geral.

            Não tenho nenhuma explicação ou interpretação para esses dois sonhos. Apenas vou aproveitar a deixa para formular algumas considerações sobre esse tipo de atividade cerebral.

            Não faz muitos dias, encontrei no Riverside o meu amigo e confrade Humberto Guimarães, psiquiatra, leitor voraz e arguto, escritor de mérito, e, quando o deseja, um conversador atraente, sobretudo pelos muitos “causos”, anedóticos ou não, com que ilustra sua prática.

            Já não me lembro a propósito de que (ou se sem propósito nenhum), disse-lhe que não concordava integralmente com a tese atribuída a Freud de que os sonhos revelam desejos ocultos, pelo menos não todos. Apresentei duas ou três exemplificações.

A meu ver, se eu sonhar matando ou espancando alguém, mormente um desconhecido, não significa dizer que eu queira fazer alguma dessas duas atrocidades com quem quer que seja. Aliás, tenho pavor com a simples ideia de que eu precise matar alguma pessoa, mesmo em legítima defesa. Ele me respondeu que os sonhos e os sonos têm muitos mistérios, e que pouco se conhece sobre esses dois estados mentais. Em resumo, o desejo contido num sonho, é apenas uma faceta diminuta em face do que ainda não sabemos.

Muitos acreditam que no sonho, pelo menos em algum deles, nossa alma ou espírito deixa o nosso corpo, e faz longas viagens, creio que em outras desconhecidas e inefáveis dimensões. Não tenho nenhuma certeza quanto a isso, mas também não rechaço de forma peremptória essa hipótese.

Consta que temos muitos sonhos em cada período de sono. Quando na adolescência, em que eu tinha um sono profundo e longo, não tinha muita convicção quanto a isso. Mas hoje, que já acordo algumas vezes durante a noite, muitas vezes em meio a um sonho, verifiquei na prática que isso é verdade. 

Em regra, só recordo meus sonhos quando acordo no momento em que eles estão a acontecer. Às vezes, se não fixo minha atenção neles, logo os esqueço. Aliás, já li que não devemos forcejar em recordá-los. Se os esquecemos, é porque eles foram feitos para o esquecimento. Portanto, melhor seria esquecê-los. 

Fisicamente, só recuperamos nossa energia com o sono. E dizem que são os sonhos que organizam e “reparam” nossa mente, sobretudo nos momentos de estresse; que sem sonhos, enlouqueceríamos. Acho que os sonhos servem também para nos mostrar que somos todos potencialmente frágeis e pecadores, porquanto em muitos sonhos temos os mesmos pecados e vicissitudes que reprovamos em nossos semelhantes.

Muitos sonhos são repetitivos. Outros, são uma total novidade. Alguns, são estranhos, bizarros, e se revestem de um conteúdo totalmente insólito. Em quase todos os meus sonhos, mesmo os mais semelhantes à realidade tal como a conhecemos em nosso estado de vigília, há um momento de excentricidade, de esquisitice, o que nos facilita distinguirmos o sonho da realidade em que estamos acordados. 

Talvez pela posição de nosso corpo ou mesmo pelo fato de apenas estarmos dormindo, sentimos dificuldade ou travamento em executar certos movimentos e ações em nossos sonhos. Mas, muitas vezes, fazemos coisas que jamais faríamos acordados, como voar, atravessar uma parede, nos tornar um genial escultor ou executar um hábil malabarismo circense. Ou pescar uma sereia ou cavalgar um Pégaso (ou, ao menos, um pangaré alado).

Porém, não raras vezes, tudo na vida nos parece tão irreal como um sonho dentro de um sonho, dentro de um sonho, dentro de um sonho... como um espelho frente a outro espelho... ou como as bonecas matrioskas (russas), em série infinita.