Igreja Matriz de N. Sra. dos Humildes, em Alto Longá.
Igreja Matriz de N. Sra. dos Humildes, em Alto Longá.

Reginaldo Miranda[1]

Desde priscas eras demoravam os indígenas alongases nos sertões que medeiam entre as terras dos poti, cratéus, anapurus, tremembés e outras nações indígenas do centro-norte da bacia oriental parnaibana. Viveram por gerações apenas em contato com gente da sua etnia, umas tribos amigáveis outras nem tanto, às vezes entrando em conflito quando precisavam lutar por uma lagoa mais piscosa, ou uma mata mais rica em frutos e animais silvestres.

No entanto, desde o início da era dos mil e seiscentos começaram a ouvir vagas notícias de homens brancos, de língua embolada, que passavam como corisco em ágeis montarias pela faixa mais próxima ao litoral, ao norte, na travessia entre o Maranhão e Ibiapaba. Eram notícias vagas que lhes chegavam pelas línguas de outras aldeias, provocando maus presságios. Muitas luas se passaram, até que a partir de 1655 chegavam-lhes outras notícias de que os índios de Ibiapaba fizeram pazes com os brancos, aceitado serem missionados pelos padres jesuítas. Desde 1661, perceberam que seus vizinhos, os poti, estavam sendo dizimados[2] como nunca dantes visto, com armas de fogo que tornava a luta desigual, aniquilando os indígenas. Por seus espias, souberam que muitos eram mortos, outros presos e uns poucos que escapavam fugiam para as Missões de Ibiapaba. Em 1692, mais uma vez souberam que o genocídio se estendia pelo sertão das Cajazeiras, quando homens vindos da Bahia dizimavam os índios crateús, pelos riachos Cabeça do Tapuio, Sambito e cabeceiras do Poti. Faziam preces aos seus deuses para os livrarem de tamanho flagelo.

Porém, no verão de 1694, estavam os alongases entretidos em suas tabas quando são surpreendidos com o trotar de cavalos e estampido de escopetas e espingardas. Era o capitão-mor Miguel Pinheiro de Carvalho quem comandava aquela tropa, a primeira que devassou as cabeceiras ou sertões que denominaram Alongases, em razão dos indígenas ali encontrados. Ele vinha participando com o coronel Bernardo de Carvalho da conquista do sertão das Cajazeiras, que inclui as cabeceiras do rio Poti e os riachos Cabeça do Tapuio e Sambito, por cuja razão sediou com seu irmão Dâmaso algumas fazendas no vale desse último. Porém, naquele ano devassou a terra dos alongases, matando muitos indígenas, aprisionando alguns e obrigando outros a fugirem para as aldeias de Ibiapaba.

Nessas circunstâncias, foi em maio de 1695, que aqueles conquistadores, ou seja, os capitães-mores Miguel e Dâmaso Pinheiro de Carvalho, demais irmãos, parentes e sócios, situaram as primeiras fazendas no vale do rio Longá. Segundo o governador e capitão-general do Estado do Maranhão, Christóvão da Costa Freire,

“por sua petição lhe enviara a dizer o capitão-mor Miguel Pinheiro de Carvalho, o capitão-mor Dâmaso Pinheiro de Carvalho, Antônio Pinheiro de Carvalho, José Pinheiro de Carvalho, Frutuoso Pinheiro de Carvalho, Francisco Gonçalves de Carvalho, Miguel Gonçalves Portella e Antônio Borges de Mesquita, moradores na cidade da Bahia e capitania do Piagui, que indo o dito capitão-mor Miguel Pinheiro de Carvalho no ano de 1694, descobrir o Sertão dos Alongases à sua custa com gente e tudo o mais necessário por terras de gentio brabo para povoar com gados seus e de seu antecessor João da Costa Guimarães[3] como constava da justificação junta, e em maio de 1695 foi povoar com os ditos gados, como dela também se mostra, e porque logo se pediu ao governador de Pernambuco Caetano de Mello de Castro a dita terra por parte de seu antecessor João da Costa Guimarães, suas enteadas Victória Pereira, Eugênia Pereira, o suplicante Miguel Pinheiro e outros mais 37 léguas da dita terra que lhe foram concedidas pelo dito governador, em 25 de maio de 1695, como se mostrava da cópia também junta tirada da secretaria e justificada pelo juízo das justificações do Estado do Brasil e porque a dita data não consta até o presente se mandar confirmar-se, ...”[4].

Então, segundo esse documento deu-se a devassa e conquista do sertão dos Alongases no ano de 1694. Diga-se, no verão daquele ano, porque eles somente iniciavam jornada depois das águas, em princípio do mês de maio. E o processo de colonização a partir de maio do não seguinte, quando partiram do vale do rio São Francisco com seus rebanhos para a fundação dos primeiros currais. Em 25 de maio de 1695, conseguiram a concessão de 37 léguas de sesmarias, porém, essas não foram confirmadas, de forma que passaram eles o restante de suas vidas situando currais e lutando para conseguir regularizar esses títulos dominiais junto ao governo do Maranhão e ao Conselho Ultramarino. De fato, alcançaram a confirmação de muitas léguas de sesmarias, porém, bastante inferior à concessão inicial. Cerca de 16 anos depois, ali possuíam aproximadamente vinte mil cabeças de gado vacum.

No mesmo ano, concomitantemente com eles, também o coronel[5] Bernardo de Carvalho e Aguiar, deixou a fazenda Cabeça do Tapuio, onde estava domiciliado há três anos e, vem desbravar e colonizar um subafluente do Longá, onde funda a fazenda Bitorocara, origem da atual cidade de Campo Maior. Segundo uma certidão de folha de serviços prestados, foi no verão de 1695, que fez ele nova entrada “e descobriu outras terras novas que chamam os Alongazes, junto da Serra da Guapava, levando também muita gente armada à sua custa, povoando-as de gados e negros escravos seus, fazendo casas fortes para a defensa dos novos moradores, dando-lhes todo o sustento, armas e munições e o mais necessário para as habitarem e defenderem, resultando desta sua diligência grande utilidade para os Estado da Bahia e Pernambuco pela grande abundância de gados com que logo se povoaram aquelas terras, seguindo o seu exemplo outros muitos moradores que logo situaram naqueles sertões mais de 40 fazendas, que sem dúvida aumentaram muito os dízimos reais”[6].

Portanto, o marco inicial de devassa, conquista e colonização do vale do rio Longá está bastante documentado. Estava livre a terra porque o governador de Pernambuco não mediu a mão e concedeu 37 léguas de sesmarias àqueles primeiros conquistadores, enquanto o do Maranhão, em nova concessão, reduziu à 30 léguas iniciais; porque também Bernado de Carvalho situou grande fazenda e dominou extensa área; porque em seus respectivos rastros chegaram outros pioneiros, situando mais de 40 fazendas. Também é certo que alguns deles estavam a soldo da Casa da Torre, embora não confessem em suas petições, porque mais tarde vão pagar renda aos senhores daquele morgado baiano.   

Também, é oportuno lembrar que a conquista e colonização dos sertões e vale do rio Longá, deu-se por lusitanos vindos da Bahia num prolongamento do processo de colonização no sentido do sul para o norte. Foi esse o sentido da colonização do território piauiense, num processo lento que veio desde o vale do rio São Francisco até alcançar as praias litorâneas. Não é sem razão que as cidades de Campo Maior e Barras nasceram tendo por base fazendas fundadas por esses pioneiros luso-baianos. Não é sem razão que as terras adjacentes ao rio Igarassu, suas ilhas até a Pedra do Sal, tenham sido concedidas ao baiano Pedro Barbosa Leal; que a vila de Nossa Senhora de Montserrat da Parnaíba, tenha sido fundada em 19 de maio de 1708, a mando deste, pelo luso-baiano João Gomes do Rego. Não é sem razão que o Arraial Velho, hoje cidade de São Bernardo do Maranhão, tenha sido fundado pelo luso-pernambucano Antônio da Cunha Souto Maior, depois de sua morte sucedido na posse pelo luso-baiano Bernardo de Carvalho. Somente depois é que alguns maranhenses e cearenses, vieram fundar fazendas sob a proteção desses valentes conquistadores luso-baianos. Antes, uns poucos passavam nesse território às pressas, amedrontados, sem deixar sinal civilizatório e sem proveito para o processo de colonização lusitana. Melhor assim, caso contrário não existiria o Piauí como unidade autônoma, mas mero prolongamento da conquista maranhense ou cearense.   

 


[1] REGINALDO MIRANDA, advogado e escritor, membro efetivo da Academia Piauiense de Letras e do Instituto Histórico e Geográfico do Piauí. Contato: [email protected]

 

[2] Pelos paulistas capitaneados pelo bandeirante Domingos Jorge Velho, que conquistou a bacia do rio Poti.

[3] Segundo marido de sua esposa, que depois de viúva, casou-se pela terceira vez com Miguel Pinheiro de Carvalho.

[4] PT/TT/RGM/C/0006/379449. Registo Geral de Mercês, Mercês de D. João V, liv. 6, f. 18-23.

 

[5] Depois alcançou a patente de mestre-de-campo.

[6] PT/TT/RGM/C/0008. Registo Geral de Mercês, Mercês de D. João V, liv. 8, fl. 520/520v