NEUZA MACHADO
Entre os moradores do Manixi, “além de Maria Caxinauá, morava o bugre Paxiúba”, o detentor de uma das poderosíssimas chaves para se penetrar no entrilhamento da floresta mítico-substancial desta narrativa ficcional do narrador pós-moderno. Sobre Paxiúba, não obstante o anterior capítulo VI, a ele dedicado, há ainda muito a se examinar, analítica e reflexivamente. Entretanto, por agora, move-me um interesse maior em refletir os papeis femininos da índia maacu Ivete (belíssima) e de Maria Caxinauá (a figura da morte), nas páginas desta entrançada rede de conhecimento, que é este singular romance. Assim, digressivamente, estarei ocupada em reconhecer os desempenhos ficcionais destas importantes personagens femininas, aqui dignificadas.
O mundo ignoto
E eis a maacu Ivete se aproximando do advogado Antônio Ferreira, “agente e sucessor dos negócios” do sogro, no momento, fazendo-se convidar para o almoço no Palácio, uma vez que fora visitar Pierre Bataillon com a intenção de propor-lhe a compra do Manixi.
“Bruscamente”, brilhantemente valorizada, aparece Ivete a copeira do Palácio, a índia maacu. Ela aparece em todo o seu esplendor jovial para se contrapor à figura desprotegida, rebaixada, da índia Maria Caxinauá, uma personagem feminina marcada pelo sofrimento de seu povo. A deslumbrante índia Ivete não pertence à linhagem dos Caxinauás, ela representa a beleza selvagem de uma outra etnia, dispersada atualmente por algumas regiões do Amazonas - Alto Rio Negro, Yauareté, Pari Cachoeira, Papuri, Tiquié e outras localidades adjacentes - conhecida hoje como Macu-Hupdah (Macu-Yuhupdeh ou Uaupés-Japurá ou Nadahup). Por que uma representante feminina dos índios Maacus aparece divinizada, nesta enigmática narrativa, se todos os índios do Seringal são escravos de Pierre Bataillon? A designação tribal Macu, segundo informes indígenas, quer dizer “bichos”, ou índios que falam uma língua até bem pouco tempo ágrafa (um dialeto indígena colombiano). Possivelmente, a maacu Ivete se encontra ali como simples serviçal do Palácio Manixi, e não como plenipotenciária de tribos espoliadas. Ou, os Maacus, assim como os Caxinauás, foram/são escravos do Coronel, mas, por obra e graça do Destino Grego, a maacu Ivete conseguiu, com o seu belo semblante mítico e suas telúricas formas, fintar seu adversário? Seria porque os Maacus também são originários das mitologizantes e iluminadas reservas colombianas de pescadores indígenas, indígenas estes que em outros tempos se posicionaram como culturalmente nômades? A maacu Ivete (uma índia nômade?) possui um porte nobre. É uma “deusa” naquele fabuloso recinto. Os Palácios míticos grandiosos, por exigências históricas, foram/são moradias de deuses ou de demônios. Ou moradas de culpados espíritos vagantes. A índia maacu Ivete por enquanto é uma das deusas do séqüito do supremo caudilho-mandatário Pierre Bataillon, no momento personagem mitificado. Ivete é uma deusa solar à moda das silvícolas antilhanas, reinando em cenário europeizado, mas, não será para sempre. A índia Maria Caxinauá também já foi uma entre as muitas beldades imensuráveis desta dimensão extra-real, apenas, por um triste motivo inafiançável, caiu em desgraça, envelheceu precocemente, e perdeu o brilho. Entretanto, as duas índias representam um drama: “o drama do dia e da noite”, se me vejo aqui às voltas com as inferências filosóficas de Gaston Bachelard.
In: O fogo da labareda da serpente - Sobre O AMANTE DAS AMAZONAS, de Rogel Samuel