[Bráulio Tavares]
O estudo recente de Aderaldo Luciano, Apontamentos para uma história crítica do cordel brasileiro (2012) traz de volta o eterno problema de definir “o que é literatura de cordel”. Problema tão espinhoso quanto o de dizer “o que é ficção científica”, fantasma que me assombra há décadas, ou de chegar a um consenso sobre “o que é rock and roll”. Vivo feito um peregrino, fazendo o rodízio entre esses três templos erguidos a deuses invisíveis, deuses que cada um dos crentes afirma ter enxergado mas não tem palavras para descrever.
Aderaldo questiona, com razoável objetividade e clareza, a definição proposta por Veríssimo de Melo: “Cordel é poesia narrativa, popular, impressa”. É uma dessas definições que à primeira leitura parecem não apenas corretas como óbvias, mas que não resistem a um exame, ou, pior, à comparação com exemplos concretos. Veríssimo deveria ter relativizado essa afirmação como expressões tipo “predominantemente... em geral... na maior parte das vezes...”, etc. Mesmo nos casos em que o cordel pertence claramente a uma categoria, existem bordas dele que estão cruzando alguma fronteira e pertencendo a outra coisa. É normal. É da natureza da arte, sempre movida a individualidades, sem obedecer a um Comitê Central.
Encontrar uma definição precisa para um gênero, modo ou estilo literário é o sonho (e às vezes o pesadelo) de todo acadêmico, e de todo estudioso diletante como eu. Mas é difícil encontrar definições precisas, científicas, para os fenômenos da cultura, que tendem a ser heterogêneos, e não homogêneos. Na literatura e nas artes em geral é muito forte o impulso da originalidade, da diferença, da novidade, e isso em muitos casos arrasta cada nova obra para longe daquele “miolo” compacto em que tudo é homogêneo e as obras são parecidas entre si. Naquele miolo, a definição funciona maravilhosamente. Na periferia, no entanto, vão surgindo cada vez mais obras cujo autor pensou: “Vou fazer uma coisa que ninguém fez ainda”. E a definição vai pro espaço.
Em seu ensaio clássico sobre literatura fantástica, Tzvetan Todorov lembra que o conceito de “gênero” na Literatura foi pedido de empréstimo à Biologia, mas que os dois casos são muito diferentes: “Existe uma diferença qualitativa quanto ao sentido dos termos ‘gênero’ e ‘espécime’ conforme sejam aplicados aos seres naturais ou às obras do espírito. No primeiro caso, o aparecimento de um novo exemplar não modifica de direito as características da espécie; (...) o mesmo não acontece no domínio da Arte ou da Ciência. A evolução segue aqui um ritmo completamente diferente: toda obra modifica o conjunto dos possíveis, cada novo exemplo muda a espécie”.